A Farsa da Autenticidade
No tempo das simulações e das verdades prontas, restam dúvidas mais verdadeiras que as certezas
O case "Consumo Eficiente de Energia" da agência de publicidade DM9 para a Consul conquistou o Grand Prix no Cannes Lions 2025, mas a glória durou pouco. O Grand Prix brasileiro virou piada depois que vieram à tona imagens manipuladas e dados falsos no videocase premiado. Se nem os jurados de Cannes conseguem separar criatividade de farsa, como o consumidor pode confiar no que vê? A publicidade brasileira acaba de provar que a autenticidade morreu - e foi enterrada com honras de festival internacional. Afinal, autenticidade para que?
Falar sobre autenticidade virou regra. Está no discurso das marcas, nas legendas dos influenciadores, nas promessas de cursos relâmpago, nos algoritmos que entregam exatamente aquilo que a gente supostamente precisa ver para se tornar mais... a gente mesmo. Só que isso não tem nada de autêntico. E quanto mais vejo essa palavra virar vitrine, mais percebo como ela vem sendo usada para esconder justamente aquilo que se diz querer mostrar.
Acompanho há bastante tempo os movimentos da cultura de massa, os desvios, as modas, as mutações que acontecem toda vez que uma nova tecnologia entra no jogo e muda o jeito como nos comunicamos, nos mostramos, nos reconhecemos. E o que vejo agora é um mundo fragmentado, dividido em zonas de conforto onde quase ninguém está disposto a realmente escutar o que vem de fora da própria bolha. A polarização, que de início parecia ser um efeito colateral, acabou virando mecanismo de engajamento. E como tudo precisa engajar, até a opinião virou performance.
As pessoas não pensam, replicam. Nem sempre sabem o que estão dizendo, mas dizem com força, como se a convicção bastasse para tornar tudo verdade. É fácil, rápido, não exige investigação.
Vivemos, hoje, sob um dilúvio de informação. Nunca se teve tanto dado, tanto conteúdo, tanta possibilidade de acesso e, ao mesmo tempo, tão pouca lucidez. A maior parte do que circula por aí é uma repetição do que já foi dito milhares de vezes, só que com outra cara, outra embalagem, outro tom. Até a ciência, que por tanto tempo ocupou um lugar quase sagrado no imaginário coletivo, se vê pressionada a produzir respostas rápidas, estudos que não foram devidamente validados, papers que se transformam em manchetes antes mesmo de passarem pelo crivo mais básico da revisão crítica. A pressa por se posicionar, por ter algo a dizer, superou o cuidado de saber se aquilo que se diz tem de fato algum fundamento.
E no meio disso tudo, eu me pergunto: quem está olhando pra isso com distância suficiente pra não se deixar arrastar? Quem, de fato, se pergunta se aquilo que pensa é mesmo seu pensamento? A impressão que tenho é que vivemos como marionetes que acreditam estar escolhendo livremente. A curadoria invisível dos nossos acessos define o que nos informa, o que nos sensibiliza, o que nos alarma, o que nos distrai. Chamamos isso de algoritmo como se fosse uma entidade neutra, mas é controle puro. Um controle que não grita, mas direciona, que não impõe, mas seduz. E o que é mais irônico é que muitos ainda repetem que estão mais livres do que nunca.
A velha concentração de poder continua existindo, claro, mas agora ela está ampliada por uma arquitetura de dependência emocional e cognitiva. Os conflitos que sempre existiram apenas mudaram de vitrine. A violência social está mais escancarada, e tudo isso só ajuda a perpetuar um estado de alerta permanente, esse resquício evolutivo que carrega o nome de luta ou fuga, e que continua operando em nós como se a ameaça fosse constante, iminente, inevitável. Basta prestar atenção nas manchetes, nos podcasts mais ouvidos, nos vídeos mais compartilhados: todos, direta ou indiretamente, falam de medo:
Medo vende.
Nos convencemos de que o mundo é perigoso demais para que possamos simplesmente relaxar, olhar com calma, viver sem desconfiança. E assim seguimos operando sob tensão, como se qualquer pausa fosse sinal de negligência.
Mas em meio a tudo isso, eu ainda volto à mesma pergunta: o que é autêntico? Existe algo, hoje, que não tenha passado por alguma camada de mediação, edição, intenção? É possível encontrar algo que não tenha sido contaminado pela expectativa de causar impacto, de ser visto, de ser aprovado? Até mesmo os conteúdos que dizem ser "100% humanos" já nascem sob o peso da dúvida. Não importa se foi feito sem IA, porque todo o contexto que envolve esse conteúdo já é artificial.
E aí me pego pensando se talvez o problema não seja só o conteúdo, mas o modo como existimos nele. Se não seria o caso de reaprender a habitar a realidade por outros meios, com menos filtros, menos intermediações, menos necessidade de parecer algo. Não se trata de nostalgia, nem de idealizar o passado. É só uma tentativa, talvez ainda tímida, de lembrar o que é viver sem o verniz.
Passamos a vida inteira acreditando que somos uma espécie de alma individual habitando um corpo, separados do mundo, dos outros e da própria vida. Ninguém nos contou, ou talvez a gente tenha esquecido, que pode ser justamente o contrário: que a vida é o que vive através de nós. Que esse corpo e essa mente que usamos como identidade são apenas formas temporárias de expressão de algo que não começa nem termina.
Chamam isso de Consciência, mas a palavra é menor do que a experiência. É o que permanece quando todo o resto vai embora. Não dois, mas um. Não um indivíduo, mas uma presença. Eu sou. Simples assim.
E não importa quanto a mente lute contra isso. Aliás, é natural que lute, porque aceitar essa possibilidade desestrutura tudo o que nos ensinaram a valorizar, colocando em xeque as histórias, os méritos, as dores e os desejos. Mas, se você observar bem, é exatamente essa estrutura que gera sofrimento. A dor não vem do que acontece, mas da ideia fixa de que isso acontece comigo, para mim, contra mim.
A consciência que vê não sofre. Quem sofre é o mecanismo corpo/mente que interpreta. A alegria, a tristeza, o medo, o êxtase, tudo isso passa por esse sistema, mas nada disso toca o que você é de verdade. O problema é que esquecemos disso tão cedo que o resto da vida vira uma tentativa de preencher esse vazio com coisas, conquistas, experiências. Como se a próxima aquisição ou conquista, fosse finalmente trazer sentido.
E às vezes, quando tudo falha, quando nada mais parece funcionar, surge um lampejo. Um silêncio entre os pensamentos. Uma percepção que não se explica, mas se reconhece. E esse instante muda tudo, mesmo que você não saiba exatamente o porquê. É como abrir uma porta que sempre esteve destrancada, só que pelo lado de dentro.
Alguns chamam isso de despertar, pessoalmente prefiro “relembrar”. Outros acham que vivemos numa simulação, tese que virou moda entre filósofos e bilionários entediados (leia-se Elon Musk). Mas talvez seja apenas a própria Consciência brincando de ser forma. Brincando de esquecer para ter o prazer de lembrar.
Então o que falta? O que ainda impede esse reconhecimento mais amplo? Talvez só o cansaço de tentar dar sentido ao que não tem. Talvez seja preciso chegar ao fim de todas as tentativas para que aquilo que é, simplesmente seja.
A tal autenticidade de que tanto falam, não tem nada a ver com originalidade, nem com ser diferente, muito menos com criar uma versão mais coerente de si mesmo. Autenticidade, nesse caso, é só parar de sustentar o que nunca foi verdade.
E isso, por si só, já seria um milagre.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
Toda vez que uma palavra perde sua essência para virar buzzword aqueles que menos praticam ou possuem essa essência se apropriam dela.
Ou seja, quando mais alguém fala que é autêntico (ou qualquer outra palavra esvaziada), mais eu me convenço de que é exatamente o oposto dela.