A gravidade do ego e o truque da memória
Relances de lucidez em meio ao barulho de sempre
Outro dia ouvi uma gravação do James Low, pensador que admiro e acompanho há algum tempo no aplicativo do Sam Harris, o excelente Waking Up. Gosto da clareza com que Low trata temas densos sem dourar a pílula. Nesta fala, ele dizia que pensamentos e emoções são como flores ou vegetais: brotam da terra, vêm do chão, crescem sozinhos. Não escolhem aparecer. Só aparecem.
Não importa se é uma rosa ou capim mimosa, tudo surge do mesmo lugar. Isso já diz muita coisa. Nenhum pensamento carrega valor intrínseco. Nenhuma emoção vem com atestado de validade. Eles só surgem. Mas a gente tem preferências e gosta de uns, odeia outros, escolhe o pensamento que nos confirma, rejeita o que nos confronta. Reagimos como se soubéssemos de onde tudo isso realmente vem (certeza que vem de ‘mim mesmo’…) e acreditamos piamente que nós somos os nossos pensamentos.
Low dá um exemplo simples e certeiro: escolher brócolis em vez de repolho. Não há verdade objetiva nessa escolha. É puro gosto, puro condicionamento, aliás, meio questionável para mim… ;) . Assim como alguém que odeia usar gravata sem saber muito bem por quê. A decisão é pessoal, mas o impulso vem de um acúmulo de memórias, crenças e repetições que operam nos bastidores. A mente nos convence de que sabemos o que estamos fazendo, mas quase sempre estamos só repetindo padrões.
O mesmo vale para pensamentos e emoções. O jeito como lidamos com eles é filtrado por tudo que já vivemos, acreditamos ou tentamos esquecer. Só que tem um ponto importante aqui: se levo a sério a ideia de equanimidade, então não preciso mais ficar escolhendo entre gostar ou não gostar do que aparece. Posso simplesmente aceitar. Sem precisar gostar. Sem precisar concordar. Aceitar porque é o que está aqui.
Claro que nem sempre consigo. Mas quando consigo, deixo de resistir. A equanimidade não é uma pose espiritual, é uma lucidez prática. Quando paro de opinar compulsivamente sobre o que penso ou sinto, percebo que esses movimentos internos perdem força. Passam. E eu fico. Não há o pensador ou o sentidor, tudo é a mesma manifestação dentro do nosso “artefato” corpo/mente.
Tenho vivido alguns relances disso, principalmente em situações que costumavam a me pegar “de jeito”. Alguns incômodos antigos ainda aparecem como questões com autoestima, com essa ideia inflada de importância pessoal. Coisas que hoje reconheço como ruído, mas que às vezes ainda fazem barulho. Basta um comentário atravessado, uma crítica mal formulada, uma avaliação morna de algo que fiz com dedicação. Às vezes nem isso - só uma lembrança do nada, uma memória inventada, um pensamento que se impõe como se fosse verdade. E o corpo responde como se tudo estivesse acontecendo de novo. E tome adrenalina e cortisol.
A química não distingue presente de passado. Junto com a adrenalina, a tensão, a contração, um calor súbito no plexo solar, a visão embaralha, o juízo também. A percepção se fecha. E tudo o que está de fato acontecendo aqui, agora, some da tela.
É assim que a mente mente. Mistura pedaços de memória, projeta intenções onde não há nada, fabrica uma realidade paralela. E se não há presença, a gente acredita. E paga o preço.
Esses episódios ficaram mais raros. Tenho insistido numa prática de atenção radical. O tempo todo, onde quer que eu esteja. Isso tem um efeito colateral interessante: me livra da obrigação de escrever diário de gratidão, coisa que fiz durante algum tempo e foi bom. Agradeço agora direto, na hora, sem lista, sem postergação. Aqui, agora, afinal, estou atento e vivendo naquele instante.
No começo, encarei como um jogo. Uma prática, quase uma brincadeira, que foi sugerida por Joseph Goldstein, professor budista que também sigo no app do Sam Harris. Ele propôs uma métrica simples: NPM, Noticings per Minute. Quantas vezes por minuto consigo notar algo com atenção real? No início, quase nada. Mas aos poucos, fui percebendo mais. Perceber virou hábito. E quando percebo, volto, saio da ruminação ou da projeção, encontro um espaço entre um pensamento e outro e tento ficar ali, percebendo o que está à minha frente.
Esse pequeno recurso funcionou como um botão de reinício, um reset. Quando noto, interrompo o transe, abro um espaço. Isso me dá tempo, tira o peso e me oferece um chão.
Com o tempo, esses intervalos foram se encadeando. Meu tempo de presença aumentou, a gratidão ficou mais natural. O autojulgamento perdeu importância. O espaço interno cresceu, mas não porque me tornei alguém melhor, mas sim porque parei de resistir tanto ao que já está aqui.
Não é iluminação nem despertar. É só sanidade.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski