A improbabilidade silenciosa. O desastre da McLaren
A cultura decide antes da estratégia. A pista confirma.
Algumas temporadas parecem definidas antes mesmo de começarem a amadurecer; ainda assim, alguma coisa se move no subterrâneo da corrida e lembra que previsibilidade e projeção são apenas desejos disfarçados de análise. O mundo das organizações vive exatamente da mesma forma.
A trajetória deste ano revelou um Verstappen inteiro, atento ao que a pista dizia mesmo quando o carro parecia incapaz de acompanhar. Ele iniciou a temporada com franqueza: sabia que não estava no centro do desempenho e talvez carregue o arrependimento de ter jogado o carro em cima de George Russel na Espanha, o que o teria deixado a apenas 3 pontos atrás de Norris hoje.
A McLaren, naquele momento, sustentava um conjunto técnico e emocional que deixava Piastri confortável na liderança e Norris firme no retrovisor. Até que veio o GP da Holanda e os resultados de lá para cá mostram a consequência natural de algum desequilíbrio, mas que ainda assim, mesmo com a inversão na liderança do campeonato, mantinha a McLaren como absoluta.
A corrida em Las Vegas com a dupla desclassificação e ontem no Catar desfizeram essa narrativa com uma sutileza que só o automobilismo oferece. O safety-car abriu uma janela para troca de pneus que o grid inteiro aproveitou. A McLaren permaneceu na pista. Piastri e Norris seguiram enquanto todos reorganizavam suas possibilidades com pneus novos. A decisão criou um deslocamento silencioso: o desgaste aumentou, o ritmo caiu, a corrida passou a obedecer a outra lógica. Verstappen voltou ao traçado com borracha fresca e presença total. Transformou o instante em vantagem real, se aproximou ainda mais da liderança do campeonato e reposicionou todos os protagonistas numa temporada que parecia madura demais para ter reviravoltas como as melhores séries de suspense.
A diferença entre os três pilotos se mostrou mais clara justamente a partir desses movimentos. Norris conduz com energia aberta, vibrante, sensível às pressões e ao peso emocional de cada disputa. O talento dele não se discute, mas o centro interno oscila quando a disputa se estreita. Essa oscilação ecoa no rádio, nos engenheiros, nas escolhas que tentam protegê-lo quando, na minha visão, ele precisa apenas de espaço para respirar.
Já Oscar Piastri opera com contenção, frieza. Observa com precisão, administra a corrida com calma, mantém uma serenidade que impressiona pela idade e pelo tamanho do palco. Falta apenas transformar essa lucidez em direção psicológica, aquela força que reorganiza o ambiente em torno de si. Ele enxerga o que acontece, mas ainda não imprime um ritmo próprio na equipe. E acredito que depois de ontem, vá ficar ainda mais difícil, já que ele claramente foi o maior prejudicado pela decisão incompreensível da equipe.
Verstappen se move a partir de outro lugar. Ele não busca firmeza; parece que já nasceu nela. Não carrega a ansiedade da necessidade, nem da expectativa. A pilotagem dele nasce de um ponto estável que não depende da posição na pista. Quando uma brecha se abre, ele ocupa sem pressa. Quando a pista muda, ele muda com ela. Essa qualidade de presença cria um campo que altera o entorno: engenheiros falam menos, mecânicos erram menos, decisões fluem sem disputa interna.
Essas posturas individuais se espelham nas culturas que os formam. A Red Bull Racing funciona como um organismo orientado por ousadia, precisão e velocidade de decisão. A equipe confia no piloto e permite que a identidade dele apareça inteira. Ali, autonomia é fundamento, não risco. A organização se afina com a clareza de Verstappen e se molda ao que ele entrega com naturalidade.
A McLaren carrega outra arquitetura. É sofisticada, meticulosa, profundamente competente, mas ainda afetada por ressonâncias de cautela e consenso. A cultura protege, analisa, pondera demais (sistema 2 do Daniel Kahneman). Essa postura impacta seus pilotos: Norris tenta crescer além dessa moldura, Piastri tenta neutralizá-la para encontrar o próprio espaço. A equipe avança, mas muitas vezes perde o fio do instante que exige decisão direta, quase instintiva.
A temporada agora repousa sobre um único ponto. Resta apenas uma prova, apenas uma chance. Não há mais tempo para “aprendizados” (como o Zak Brown e o Andrea Stella gostam de falar), reparos internos ou hesitações que se disfarçam de prudência. O campeonato respira na qualidade de atenção que cada equipe consegue sustentar e na profundidade de presença que cada piloto é capaz de acessar.
O desfecho desta temporada deixa um recado simples e direto para qualquer liderança: as oportunidades não esperam por análises tardias nem por prudências disfarçadas de cautela. Elas surgem de forma crua e exigem presença imediata.
Se a equipe hesita, a realidade avança sem pena. Quando o foco se dispersa, o instante se fecha e se perde para sempre. Vence quem tem coragem de agir com foco e nitidez enquanto tudo se move, quem sustenta atenção suficiente para perceber o que está acontecendo agora e não o que gostaria que estivesse acontecendo.
Essa é a qualidade de presença que decide corridas, projetos, estratégias e destinos. É isso que separa quem ocupa o momento de quem apenas reage a ele.
Numa nota final, parabéns merecidos ao time Williams que conquistou seu segundo pódio da temporada com Carlos Sainz.
E a Ferrari, você me perguntaria. Ah, a Ferrari, segue sua sina de empanar carreiras.





