Ontem à tarde, como tem sido frequente ultimamente, sentei no fogo de chão que construímos na parte mais baixa do terreno, ocupada por um pequeno bosque. Este espaço tornou-se, sem planejamento ou pretensão, meu lugar sagrado particular.
Tenho passado cada vez mais tempo ali, sob a proteção de árvores de mais de 40 anos que, se pudessem falar, contariam histórias de muitos verões. São guardiãs silenciosas que testemunharam tantas transformações quanto as estações que elas coloriram ao longo das décadas.
O lugar tem uma qualidade única de induzir à reflexão e quietude mental. Não é um silêncio absoluto - longe disso. É uma imersão numa sinfonia natural: o coral matutino dos sabiás, a gritaria das maritacas (dão uma folga de vez em quando), o zunido ocasional de abelhas procurando flores, o vento “barulhando” as folhas quando passa. Até os sons do dia a dia - alguém mexendo na casa, um dos cachorros latindo lá na cerca, os poucos vizinhos em suas rotinas - parecem fazer parte dessa paisagem sonora que mais acolhe do que perturba.
Nesse lugar, que acabei apelidando de minha "capela sistina" particular - porque as árvores são tão altas que formam uma catedral natural - encontro meu refúgio. Aqui as horas passam enquanto leio, estudo, gravo alguns vídeos ou simplesmente não faço nada, o que já é um presente incrível por si só.
Às vezes, coloco meus fones com cancelamento de ruído, não para fugir do mundo, mas paradoxalmente, para mergulhar mais fundo nele, geralmente ouvindo músicas orientais ou clássicas acompanhadas pela vibração das batidas binaurais. Foi assim ontem.
Durante um de meus inúmeros debates internos, a sensação de conexão foi aumentando sem muita razão de ser. Era como se a fronteira entre observador e observado começasse a se desmanchar, os contornos da realidade ficando mais suaves, menos definidos. Me vi ficando cada vez mais apagado em relação ao que via e ouvia e me internalizando numa sensação de torpor e entrega.
Não era uma experiência assustadora, embora o ego, com seu sempre presente instinto de autopreservação, tentasse me puxar de volta à análise racional, insistindo que eu deveria ter medo daquilo, daquela sensação. É um padrão recorrente que aprendi a reconhecer, e nesses momentos, encontro conforto nas palavras de David Carse, narradas pela voz grave de Terence Stamp, no audiolivro “Perfect Brilliant Stillness- Beyond the individual self” (Quietude perfeita e brilhante, além do eu individual) lembrando que "não há ninguém em casa". Não existe um “eu” para pavor do ego que insiste em assumir as rédeas das nossas vidas.
O que há ali é apenas um "aparato" corpo/mente que é animado pelo fluxo da Consciência absoluta. Aquilo que pensamos ser nós mesmos, estes corpos que tocamos tão física e obviamente, com nossas histórias, nomes, passado, futuro, expectativas, medos e desejos, é apenas uma miragem totalmente dependente dos nossos condicionamentos desde a infância.
A Consciência é a força vital que anima esse aparato. Não somos geradores autônomos de pensamentos ou emoções, mas sim manifestações físicas, como canais através dos quais a experiência universal flui e se expressa. Somos como estações repetidoras de sinais de rádio, amplificando e reverberando a experiência da Consciência que, em última análise, é nossa própria experiência essencial.
Impossível esquecer como esse entendimento chegou para mim anos atrás, e quero compartilhar esse momento com você:
Imagine deixar na porta tudo que carrega pela vida: seu passado, sua história, seu nome, idade, relacionamentos, profissão, amigos, seus planos para o futuro. Não se preocupe - se quiser, tudo estará ali fora te esperando quando você sair.
Sem nada. Sem peso, sem história, sem amanhã ou ontem. Apenas sendo.
Agora, observe você mesmo como se estivesse fora do seu corpo. Veja-o como um aparato, um objeto, com sua mente e funções vitais funcionando naturalmente. O que você percebe? E por fim, faça essa representação de você mesmo também desaparecer. O que resta quando não há mais nada lá, não há mais nenhuma narrativa pessoal, informações, pensamentos ou problemas a serem resolvidos?
Nossas histórias são como mochilas pesadas que carregamos vida afora. O passado já foi e o futuro ainda não chegou, então por que gastamos tanta energia ruminando o que foi ou projetando o que poderia ser? Por que ficamos presos entre o medo e a esperança, duas faces da mesma moeda ilusória?
Neste lugar de simplicidade total, finalmente percebo o que sempre esteve ali: uma compreensão fugaz, como um relâmpago que ilumina momentaneamente a noite escura, deixando sua impressão na retina da consciência mesmo depois de desaparecido.
O corpo se dissolve e passa a fazer parte do ambiente, sem nenhuma separação e aquela unidade corpo/mente, conhecida como Carlos Eduardo, ou simplesmente Cadu, revela-se como apenas mais um personagem no grande teatro da existência. Mas ele sabe agora que é o ator. E também a plateia. A Consciência que observa a si mesma através daquele traje que chamamos de corpo humano.
Uma poderosa sensação de déjà vu me invade, reconheço esse vislumbre de outras ocasiões: primeiro aos 8 ou 9 anos assim que acordava de manhã, assustado com a possibilidade de que nada existisse, tudo fosse um enorme espaço vazio (e É)1. Anos depois numa tarde contemplativa numa fazenda, e agora, na maturidade, com uma clareza cristalina.
É como se a última camada de névoa se dissipasse, revelando uma verdade que sempre esteve presente, apenas esperando ser reconhecida.
Vazio é forma e forma é vazio:
“Sutra do Coração da Sabedoria”. O que ele diz é que a forma – nós somos forma – é o vazio. O vazio se manifesta como forma. Não existe uma entidade que chamamos “o vazio” não existe uma entidade além da forma, o grande ser é vazio de um si mesmo. O vazio é a qualidade de todas as coisas serem vazias de um “eu”. Lemos “vazios de um eu”, tudo em volta são formas, tudo é vazio de um “eu”, tudo é uno. Não existe em cima ou embaixo, direita ou esquerda, surgimento ou cessação, tudo é simultaneamente vazio e forma, porque o vazio só se manifesta como forma e as formas, somos o próprio vazio. Não existe propriamente uma intenção, um plano ou uma história; simplesmente todo tempo está contido em um único ponto, passado e futuro estão contidos em um presente e esse presente é a única coisa que podemos realmente agarrar a cada instante que se esvai. Se você conseguir mergulhar no presente plenamente, você é dono de passado e futuro e, se esquecer de si mesmo pode abarcar o universo inteiro.
Entendendo, nada está separado, você e todas as coisas são uma única coisa. Os pássaros lá fora são você. Os sons são você. As árvores são você. O riacho é você. Você não é você. Você é tudo isso, só está perdido nesse instante pensando que você é você, abrindo os olhos e vendo tudo separado. Mas esse fenômeno que vivemos ao abrirmos os olhos e vermos tudo, que é como se fôssemos um pequeno olho, um pequeno senso do universo que permite ter uma grande experiência.
Essa grande, maravilhosa e complexa experiência que nós como seres humanos temos, é linda, não pode ser desperdiçada, uma fantástica oportunidade que permite ouvir, cheirar, olhar e provar. Essa experiência maravilhosa é o dom da vida. Mas ela é um instrumento para um passo maior. Nós podemos atingir uma consciência maior e, ao atingi-la, não seremos mais pequenas ondas na superfície do universo, mas nos perceberemos como o próprio mar.
(daissen.org.br)
Carlos Eduardo, impressionante como você conseguiu! Eu ainda estou no processo. Cada vez mais preciso da minha capela. Um dificuldade enorme em ler esse texto sem interrupções l, mesmo em um início de noite de um sábado. Obrigado pelos ensinamentos.
Adorei o texto Cadu, a frase "Nossas histórias são como mochilas pesadas que carregamos vida afora" me tocou muito pois tenho questões profundas não resolvidas com meu pai, da mesma maneira minha esposa com o dela, inclusive ontem estávamos conversando sobre.