A planta me tratou muito bem na primeira vez. Isso, por si só, já seria suficiente para encerrar qualquer tentativa de explicação. Mas há experiências que são tão extraordinárias, tão profundamente transformadoras, que ignorá-las seria desperdiçar um vislumbre raro do que chamamos de realidade.
Sim, foram algumas poucas vezes no começo do século, quando a Ayahuasca ainda não era a febre que se tornou hoje —um hype muitas vezes reduzido a um fetiche espiritual para aqueles que buscam algo extraordinário sem realmente estarem prontos para recebê-lo. Não tenho nada contra essa popularização, desde que a intenção esteja lá.
E intenção, nesse caminho, é tudo.
Pelo que vivi naquela noite, bastaria essa experiência. A curiosidade me levou a outras sessões e inclusive uma com o cacto San Pedro. Foram experiências sensoriais e visuais incríveis, mas a mensagem relevante e que me apontou um caminho consistente, veio da primeira vez.
Meu relato
Chegamos ao sítio em Mairiporã, no interior do estado de São Paulo, no final da tarde, quando a luz do dia começa a se dissolver naquela névoa difusa do lusco-fusco, um instante em que o tempo parece hesitar entre continuar ou desaparecer. Quem dirige rápido em estrada de terra sabe que esse é o momento em que os olhos traem e enganam. A saída da Rodovia Fernão Dias nos levou mais uns vinte quilômetros para dentro do mato, até que o sítio surgiu entre as árvores, discreto, acolhedor, como se sempre tivesse estado ali nos esperando.
Era inverno. O ar seco ajudaria na cerimônia que aconteceria mais tarde, quando a noite finalmente tomasse o céu. A jornada começaria após algumas instruções do xamã peruano, que havia vindo especialmente para conduzir o ritual. Um homem simpático, com um olhar de quem já havia visto muito, e que falava um português entrecortado, resquício de suas tantas vindas ao Brasil.
Fiquei aliviado ao perceber que o ritual seria conduzido na tradição mais próxima possível da original. Nenhuma reserva com a forma como a Ayahuasca é utilizada em alguns contextos religiosos, como no Santo Daime, mas nunca fui religioso. Aos 14 anos, abandonei a missa de domingo e nunca olhei para trás. Desde então, minha busca foi outra—leituras, rituais, conversas com pessoas de todas as tradições, explorando caminhos que me levassem para um entendimento mais profundo da existência, mesmo sem saber exatamente o que estava buscando.
Era o início do século XXI, e por algum motivo besta, eu achava que aquilo simbolizava algo pessoal. Como se a transição de milênio também fosse um portal para algo novo dentro de mim.
O Ritual
O xamã nos chamou para a varanda onde aconteceria o ritual. Um espaço amplo e aconchegante, iluminado apenas pelo luar e algumas velas posicionadas estrategicamente, refletindo sobre tapetes persas e kilins variados, entre poltronas, sofás e almofadas espalhadas pelo chão.
O grupo era pequeno, não mais que oito pessoas. A noite já havia caído completamente, e as estrelas se espalhavam sobre nós com uma nitidez que só se vê longe da cidade. A claridade era suficiente para revelar o contorno das árvores e o relevo do sítio.
O tambor começou a soar. Um ritmo constante, que parecia sincronizar a respiração de todos nós. De repente, uma coruja, pousada em alguma árvore do bosque, soltou um grito agudo. Como se anunciasse que algo estava para começar.
O xamã se aproximou com uma caneca de cerâmica, preenchida com a bebida escura e espessa que tinha um cheiro terroso, ancestral, como se carregasse dentro de si o peso de todas as histórias que já haviam sido contadas antes daquele momento.
Dei o primeiro gole, o gosto era ainda pior do que eu imaginava. Amargo. Indescritível. Nada na minha memória gustativa se comparava àquilo. Engoli rápido, tentando não me deter no sabor.
A orientação era clara: depois de beber, apenas nos deitássemos e esperássemos. A planta saberia o que fazer.
"Ayahuasca nunca falha", disse o xamã. "Ela sempre traz o que você precisa ver."
O Que se Revelou
Deitei-me sobre as almofadas, olhando para o céu. Nunca tinha visto tantas estrelas. Aos poucos, os murmúrios ao meu redor foram diminuindo. O tempo parecia desacelerar.
Os primeiros efeitos chegaram como um peso diferente no corpo. Uma estranha sensação de calor. Então, de repente, tudo respirava.
A árvore em frente à varanda brilhou em um tom azulado e pulsante. Ela inspirava e expirava. Seu tronco ondulava levemente, como se estivesse viva de um jeito que eu nunca tinha percebido antes.
Fechei os olhos.
Um caleidoscópio de cores e formas geométricas emergiu em minha mente. Explosões vibrantes, um fluxo incessante de imagens que não seguiam nenhuma lógica, mas que pareciam carregadas de um significado que, de alguma forma, eu compreendia sem precisar traduzir.
Abri os olhos novamente. O susto já tinha passado. Nesse momento, apenas aceitava o que via. O bosque inteiro estava tomado pela mesma luz azulada, e todas as árvores respiravam. O ar ao meu redor parecia líquido. Como se eu estivesse mergulhado em uma vastidão onde não havia separação entre mim e aquilo tudo.
Eu não era um observador. Eu era parte daquilo.
Deitei-me novamente, rendido à experiência. Desta vez, as imagens internas se estabilizaram, e no meio daquele turbilhão caleidoscópico, surgiu a visão mais clara que eu poderia receber.
Uma mão.
Uma mão se abrindo lentamente, os dedos se desenrolando, a palma voltada para o céu.
Soltar.
Abrir mão.
Deixar ir.
Era isso. A mensagem não precisava de palavras. Ela estava ali, tão óbvia e ao mesmo tempo tão profunda, que parecia risível o fato de eu nunca ter percebido antes.
Não havia nada a alcançar. Nada a conquistar. Nada a segurar com força.
A mão que se abre.
Desde então, minha prática não foi mais buscar respostas ou correr atrás de experiências transformadoras. Minha prática foi soltar. E de uns tempos para cá, incluí a prática do ‘servir’, os gestos são muito parecidos e faz sentido pensar que o recado é duplo…
Parar de lutar contra a correnteza e apenas fluir.
A grande ironia da busca espiritual é que passamos anos tentando encontrar algo que sempre esteve aqui.
Sempre foi isso. Sempre foi agora.
E tudo que a planta fez, foi apenas me lembrar disso.
Que experiência maravilhosa!
Conheço bastante sobre essa medicina e tenho muitos amigos que consagram! Já senti o "chamado" algumas vezes, mas prefiro adquirir mais entendimento espiritual e moral antes de consagrar.
Acredito que quanto mais termos entendimento, melhores serão as respostas.
Obrigado por compartilhar seu relato Cadu! 🙏🏻🍀
Cadu, o seu texto é sempre poético.
Nunca experimentei Ayahuasca. Dentre os conhecidos que tentaram, muitos tiveram uma experiência transformadora. Outros sentiram que foi uma sobrecarga para o sistema nervoso.
Já experimentei diferentes tipos de breathwork, em contraste, mas com foco na liberação de traumas, ao invés de transcendência. Minhas experiências de êxtase vieram espontaneamente, do nada, ou de prática de meditação.