Há um instante em que a vida começa a devolver tudo o que colocamos nela. Não é uma perda, está mais para uma restituição. O que chamamos de “meu” é apenas o tempo que as coisas passam em nossas mãos antes de voltarem ao fluxo do qual vieram.
Repare na quantidade de coisas que acumulamos ao longo da vida. Objetos, roupas, memórias, histórias, pequenos apegos que se transformam em altares particulares. Mas tudo isso, no fundo, é apenas empréstimo. Nosso check out aqui é sem bagagem e nós sabemos disso, mesmo quando fingimos esquecer.
Então me pergunto, e te pergunto: desde o primeiro dia, somos treinados para correr atrás do que falta - estudar, conquistar, crescer, provar valor, repetir o que foi “aprovado” pela sociedade. Passamos a vida tentando nos encaixar num roteiro que chamam de “correto”, e nesse movimento esquecemos de habitar aquilo que já está aqui. Se o objetivo é sempre o que ainda não temos, em que momento realmente vivemos o que já é nosso, agora, neste exato instante em que você lê estas palavras?
A liberdade de viver satisfeito com o que se tem, disponível para o que vier, sem desejos nem opiniões, é rara e preciosa. Demorei muitos anos para compreender, ou ao menos vislumbrar, o que isso significa. Durante boa parte da vida, fui o que se pode chamar de acumulador. Não apenas de coisas, mas de experiências, viagens, relações, lembranças. Tudo isso foi se desfazendo aos poucos, como a imagem de um passado que já não existe.
Hoje olho em volta e percebo: tirando o que ainda insisto em chamar de meu, nada é realmente necessário. O que existe é apenas isto - este instante, esta respiração, este silêncio entre dois sons. Por mais banal que pareça, é a única realidade que de fato existe.
Recentemente voltei a escrever todos os dias. Mas quis fazer isso de um modo mais direto, mais tátil. Comprei uma máquina de escrever antiga, cheia de manias, e mandei restaurar. E, como bom obsessivo, mergulhei no assunto até o pescoço. De um dia para o outro, tornei-me especialista. Agora tenho várias. E eu acreditando que tinha me curado.
O prazer de usá-las sem reservas, todos os dias, é o que me faz sentar e escrever. Saber que, quando eu fizer meu check out, elas continuarão vivas nas mãos de alguém que as valorize, me dá uma alegria serena, quase infantil. Escrever nelas tem sido meu modo de entrar em flow, a minha forma mais simples e direta de tocar a Consciência Presente, essa que a não dualidade revela: silenciosa, imóvel, anterior ao som das teclas que batem as letras que ficam impressas na página que estava, há pouco, em branco.
O que antes eu chamava de meu - corpo, casa, objetos, memórias - hoje reconheço como expressões momentâneas de um mesmo campo de vida. Nada disso pertence a alguém, porque não existe um alguém separado para possuir. O eu é apenas o movimento temporário da Consciência olhando para si mesma e acreditando ser parte. O que chamamos de “eu” não nasce nem morre; apenas muda de forma, como a onda que se recolhe ao mar.
Tudo o que acreditamos acumular ao longo da vida, nossas conquistas, histórias, pessoas, objetos, tudo isso é apenas o fluxo da vida passando por nós. A verdadeira liberdade está em perceber que nunca houve posse, apenas passagem temporária, como um aluguel.
Talvez este texto tenha sido escrito (cada dia me surpreendo com o que aparece na minha mente enquanto datilografo) apenas para registrar isso: que um dia eu partirei e tudo isso, as máquinas, os objetos, o carro, a casa, as lembranças, as relações, vai permanecer. Ou não. Tudo o que chamamos de meu é só matéria emprestada à impermanência.
Olhe em volta, respire e veja o que já está aqui. A vida não quer que você leve nada, só que se perceba desperto enquanto ainda está.
“É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara.”
- O Grande Lebowski






