A viagem da mente ao coração é uma das jornadas mais desafiadoras que podemos empreender. Os nativos norte-americanos, aqueles que tiveram suas terras invadidas pelos europeus, dizem que essa travessia, que nos convida a deixar o intelecto racional para acessar um saber mais profundo, é a mais difícil de todas. Para eles, as decisões mais legítimas não vêm da mente analítica, mas do coração, onde a autenticidade e a verdade se manifestam sem esforço.
A ciência, curiosamente, começa a confirmar essa sabedoria ancestral. Descobri há alguns anos que o coração tem seu próprio sistema neural e que, surpreendentemente, envia mais sinais ao cérebro do que o contrário. Essa informação transformou minha compreensão sobre escolhas e intuição. Percebi que minhas melhores decisões sempre emergiram desse espaço interno, em momentos de silêncio e presença.
Nunca vou esquecer de quando ouvi pela primeira vez a frase "você precisa escutar seu coração". Meu chefe na época disse isso diante de uma grande decisão profissional que eu precisava tomar. Achei que era uma metáfora simpática - na época eu ainda estava buscando as respostas fora do coração - algo próximo de "abraçar árvores", mas, por curiosidade, fiz o que ele sugeriu. Aquietei a mente e prestei atenção ao que surgia dentro de mim. Para minha surpresa, a resposta veio como um sentimento claro, uma certeza que não exigia justificativa racional. Não veio da mente, não foi intelectualizada, foi sentida visceralmente e foi uma das escolhas mais acertadas que já fiz.
Mais tarde, conheci a Coerência Cardíaca(veja detalhes aqui), uma prática baseada na respiração consciente que harmoniza os ritmos do coração e do cérebro. Inspirar e expirar de forma ritmada – cinco segundos para cada – regula o sistema nervoso, reduz o estresse e amplia a clareza mental. Essa sincronização abre espaço para a intuição e um senso de conexão com algo maior, permitindo que respostas surjam sem esforço.
Por muito tempo, vi o mundo a partir da mente – como um diretor de cinema sentado atrás dos meus olhos, analisando, julgando, antecipando, escolhendo. Quando tive um vislumbre da consciência olhando para si mesma, tudo se encaixou. Percebi que não somos apenas pensamentos, identidades e papéis sociais. Estamos conectados a uma inteligência mais ampla, uma rede viva de consciência e presença. A sensação de separação, tão arraigada na cultura ocidental, revelou-se um grande equívoco.
Mas a mente ainda insiste em tomar o controle, como um campo gravitacional inescapável. E quando isso acontece, percebo e realinho a atenção ao coração. Esse movimento de retorno tem sido uma experiência prazerosa – me ‘pegar no flagra’, voltando ao ego e, sem esforço, devolver a consciência ao centro do peito. O ego e a racionalidade têm seu lugar, mas como ferramentas temporárias, e não como mestres. Esse exercício depende de atenção e foco, nunca vira um hábito.
Viver a partir do coração nos prepara para o que a vida apresenta, seja agradável ou desafiador. Esse é o espírito do Wu Wei1, o conceito taoísta de "ação sem esforço". Não se trata de passividade, mas de agir em harmonia com o fluxo natural das coisas, como a água que contorna as pedras e segue adiante. O coração compreende esse movimento intuitivamente. A mente, quando não integrada, resiste e luta. Neste momento, corremos o risco de entrar num círculo vicioso que é a fonte do nosso sofrimento.
A visão ocidental predominante nos faz acreditar que esse “diretor de cinema” esse pequeno CEO dentro de nossas cabeças controlando tudo, é real. Já os orientais costumam apontar para o coração ou para o plexo solar quando falam sobre percepção e consciência. Esses centros – mental, emocional e instintivo – coexistem em todos nós, mas a nossa sociedade “moderna” supervaloriza o primeiro em detrimento dos outros.
O que acontece quando resgatamos esse equilíbrio? Podemos, conscientemente, mover nossa atenção da mente para o coração. Um exercício simples e poderoso consiste em visualizar uma esfera de energia se deslocando da cabeça para o peito. Esse simples gesto já provoca mudanças sutis. Me lembro claramente de estar em uma negociação tensa anos atrás, quando minha mente girava freneticamente em busca de argumentos e alternativas. Quando desloquei minha atenção para o coração, senti o corpo relaxar e, sem esforço, uma solução integrativa simplesmente apareceu. Aquele momento “a-ha!”. Nada forçado, nada calculado – apenas uma resposta natural ao que o momento pedia.
A jornada da mente ao coração é um processo de remoção de camadas. Nossa consciência, como um sol brilhante, é obscurecida por véus de condicionamentos, crenças e identidades. A primeira camada é a crença de que somos apenas este corpo. Depois vem a identificação com os pensamentos, os papéis sociais, os bens materiais. Cada camada reforça a ilusão da separação. Como diz Rumi: "Seu trabalho não é buscar o amor, mas encontrar todas as barreiras dentro de si que você construiu contra ele".
A mente, quando não equilibrada pelo coração, nos mantém presos na caverna de Platão, (ou na Matrix - veja aqui ou leia aqui), olhando sombras na parede e acreditando que são a realidade. Sair da caverna não significa rejeitar a mente, mas transcendê-la, reconhecer que a luz que projeta essas sombras está dentro de nós mesmos.
O psicólogo Daniel Kahneman, prêmio Nobel de Economia, falecido em 2024, descreve dois sistemas de pensamento em seu livro “Rápido e Devagar”: um rápido, intuitivo (Sistema 1) e outro lento, analítico (Sistema 2). Tradicionalmente, privilegiamos o segundo, acreditando que a razão é mais confiável. Mas existe um terceiro nível, que chamo de "Sistema C" – a consciência cardíaca –, que integra e transcende os dois anteriores. É a intuição refinada, livre de reatividade, que surge quando estamos em coerência com o coração ou no estado de flow (os dois acontecem juntos).
A metáfora do rio ilustra bem essa integração. A mente é a margem do rio: estruturada, definida, estática. O coração é a correnteza: fluida, conectada, viva. Durante muito tempo, nos mantemos às margens, tentando controlar o fluxo. A viagem ao coração é o momento em que nos entregamos à correnteza, confiamos no movimento natural da vida e percebemos que somos a própria água.
No video abaixo, essa metáfora explicada numa cena da série “The White Lotus”:
Nosso erro foi permitir que a mente assumisse o papel de mestre, esquecendo que ela é apenas um condutor. Uma antiga metáfora espiritual compara o ser humano a uma carruagem: o corpo é a estrutura, os cavalos são as emoções, a mente é quem segura as rédeas, mas o coração é o passageiro – aquele que conhece o verdadeiro destino.
Quando restauramos essa ordem natural, a jornada se torna fluida. A mente continua operando, mas agora a serviço da sabedoria do coração. E então temos a chance de experimentar a verdadeira não-dualidade: não há mais separação entre observador e observado, entre fazer e ser.
A vida simplesmente acontece através de nós.
A ação sem esforço, também conhecida como "ação correta" ou "Wu Wei" na filosofia taoísta, surge da compreensão da não dualidade e se manifesta vividamente através dos estados de flow. Quando transcendemos a ilusão do "eu" separado, agimos não a partir de um ponto de vista egocêntrico e controlador, mas sim em harmonia com o fluxo natural da vida. Wu Wei é o esquiador que esquece sua própria existência e se torna a montanha ou o arqueiro que se torna a flecha e sente que é impossível não atingir o alvo.
É colocar a vela no barco a remo. Ação sem esforço.