Do controle ao flow: a liderança que se dissolve no coletivo
O trabalho como expressão da não dualidade
O líder em flow não é alguém que se coloca acima, nem à frente. É aquele que sabe “sair do próprio caminho”, que se dissolve dentro do espírito do time. Sua ação não se pauta pelo “fazer para a equipe” nem pelo “fazer com a equipe”, mas por um “fazer pela equipe”, onde o sentido da ação não é pessoal, mas coletivo. Assim, o líder se torna um guardião do espaço, um zelador do campo onde a confiança substitui o medo.
A liderança além do ego é a base de uma cultura de flow. Não se trata apenas de indivíduos atingindo estados de concentração plena em suas tarefas, mas de um campo coletivo onde a inteligência do todo se manifesta. Esse estado de flow não é exclusivo do indivíduo isolado; ele floresce em culturas organizacionais que estão em processo de transição - da rigidez do comando e controle para a horizontalização que entende os resultados como consequência natural, e não como meta impositiva.
Esse espaço é seguro porque o medo não encontra onde se enraizar: medo de opinar, de dar feedback, de sugerir ou até de criticar. Na cultura do flow, cada voz encontra valor, não porque todas as ideias sejam iguais, mas porque todas emergem de um mesmo lugar de pertencimento. O líder compreende que sua função não é o exercício da autoridade pessoal, mas a facilitação para que o grupo exerça todo o seu potencial. É um “nortear sem imposição”, um convite à convivência verdadeira, onde falar e ouvir são movimentos naturais de uma mesma escuta compartilhada. Isso é segurança psicológica.
Passamos em média 70% da nossa vida adulta no trabalho — mais de 90.000 horas. Esse tempo não pode ser reduzido a um mero cálculo de produtividade ou a uma corrida interminável rumo ao “chegar lá”. A maior parte de nós foi condicionada a pensar que o sentido está na conquista, na meta final, no aplauso externo. Mas a experiência mostra o contrário: aquilo que dá significado ao trabalho é, muitas vezes, algo de uma simplicidade enorme e ao mesmo tempo grandiosa: o reconhecimento mútuo, a sensação de pertencimento, a clareza de estar contribuindo de forma viva e verdadeira.
Aqui a não dualidade nos oferece uma chave essencial. Não há separação real entre “líder” e “liderados”, entre “quem dá a direção” e “quem segue a direção”. Essas distinções são funcionais, não ontológicas. A liderança é apenas uma idea, não é um indivíduo, coisa que tenho repetido ao longo do tempo.
Ao dissolvermos a identificação rígida com os papéis, surge a clareza de que o time é uma expressão de um único organismo vivo, pulsando em múltiplas formas. Nesse olhar, liderar não é exercer controle, mas permitir que o movimento natural do grupo aconteça, sem obstruções.
Um exemplo simples pode ilustrar isso: pense em um grupo de músicos improvisando juntos, uma '‘jam session'“. Ali não tem um maestro impondo cada nota, mas também não quer dizer que haja ausência de direção. O que guia é uma escuta profunda, uma sintonia coletiva que nasce do silêncio e da atenção. Cada músico lidera e é liderado ao mesmo tempo, pois todos seguem a fluidez que emerge entre eles. Assim também pode ser uma equipe em flow: um espaço onde o “eu” não precisa desaparecer, mas se reconhece como parte indissociável do “nós”.
Casos práticos de liderança além do ego
Diversas organizações pelo mundo já despertaram para essa forma de liderar:
Buurtzorg, na Holanda: uma empresa de cuidados de saúde domiciliares, conhecida por seu modelo horizontal, sem hierarquias rígidas. As equipes são autogeridas, e os líderes funcionam mais como facilitadores. O resultado é um índice de satisfação elevado entre pacientes e colaboradores, provando que o cuidado flui melhor quando não está engessado pelo ego da gestão.
Spotify: famoso pelo modelo de “squads”, tribos e chapters, que privilegia a autonomia dos times. O líder, nesse caso, não é um controlador de tarefas, mas alguém que garante que o ambiente esteja propício para inovação e aprendizado.
Semco, no Brasil: liderada por Ricardo Semler, tornou-se referência mundial pela forma radical de praticar a autogestão e dissolver as barreiras hierárquicas tradicionais. A lógica é simples, mas profunda: confiança ao invés de controle.
Esses exemplos mostram que o flow não é uma utopia, mas uma possibilidade concreta. Quando o ego deixa de ser o centro da tomada de decisão, surge um espaço coletivo onde a inteligência do todo se manifesta com naturalidade.
A simplicidade do óbvio
A liderança além do ego, portanto, não é uma técnica a ser aplicada, mas uma mudança de perspectiva. É compreender que o trabalho não precisa ser um lugar de desgaste e alienação, mas pode ser um campo fértil de autoconhecimento, contribuição e alegria, um lugar onde a não dualidade se manifesta no cotidiano. É perceber que “líder” e “liderados” são apenas expressões de um mesmo movimento, inseparáveis em essência, assim como as ondas são inseparáveis do oceano.
No fim, o sentido não está em “chegar lá”, mas em estar aqui, no agora que se renova a cada momento. O trabalho, quando vivido em flow, é um convite diário para percebermos que nunca estivemos separados.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski