Entre o piloto e o carro, o silêncio.
Quando a mente grita, a performance desaparece. E o talento se perde no ruído. Lições da Fórmula 1.
A diferença entre um piloto que conversa com o carro e um que luta com ele não está apenas no ajuste da asa dianteira ou no mapeamento do motor. Está na mente. Ou melhor, na ausência dela.
No domingo passado, 13 de abril, no circuito de Sakhir, no Bahrein, a Fórmula 1 deu mais uma aula, não apenas de velocidade, mas de consciência. Lando Norris, tido como o principal piloto da McLaren após uma campanha de 2024 digna de título, se viu desconectado de seu novo carro, o MCL39.
- “Eu sabia – a cada curva – tudo o que aconteceria com o carro. Eu me sentia no controle. Este ano, eu não poderia me sentir mais o oposto”, desabafou após uma classificação frustrante.
O carro mudou. Mas algo em Norris também mudou. Não é falta de talento, isso ele tem de sobra. Mas há um ruído sutil e profundo interferindo entre o que ele é capaz de fazer e o que, de fato, faz.
- “Mesmo na Austrália, ganhando ou não, nunca me senti confortável. Nunca me senti confiante. O carro era fantástico e isso está me salvando de muitos problemas. Mas não estou nem perto da minha capacidade. E isso é doloroso de dizer.”
Esse ruído tem nome: pensamento. Expectativas, frustrações, projeções. O passado que insiste em se repetir na memória e o futuro que ainda não chegou, mas já se cobra no presente.
- “Quando sei do que sou capaz e não chego nem perto disso, fico muito decepcionado comigo mesmo. É assim que eu sou.”
O problema é justamente esse: “ser assim”. Ou melhor, acreditar ser esse conjunto de pensamentos, reações e julgamentos e se identificar com isso como algo fixo. “Mas não acho que isso tenha necessariamente um impacto ruim”, completa, tentando racionalizar um desconforto que talvez só se dissolvesse no silêncio.
Do outro lado da garagem, Oscar Piastri mostra o oposto. Jovem, sereno e cada vez mais afiado, venceu a corrida e fez parecer fácil.
“Nenhum ruído na cabeça”, elogiou Andrea Stella, chefe da McLaren. O que isso quer dizer? Que há espaço interno. Que a atenção de Piastri está livre para o momento. Que ele não está tentando “acertar” o carro — ele é o carro. A fluidez de sua pilotagem nasce de um lugar onde a mente não interrompe, não filtra, não exige. E isso não é talento apenas. É estado de presença.
Nos ambientes de alta performance — da F1 aos conselhos administrativos — o excesso de pensamento é o novo burnout. Não se trata apenas de excesso de trabalho, mas de excesso de eu. Um eu que pensa demais, questiona demais, quer demais, teme demais. E que, por isso mesmo, trava. A atenção, sequestrada por estímulos internos (ruminações, ansiedades, autojulgamentos), perde o contato com o agora. Em vez de responder ao real, reage ao mental. Perdemos a linha de raciocínio. A linha da curva. A linha da nossa real identidade. Nossa mente/ego segue se fazendo passar por nós mesmos e decidindo nossa vida usando aquele sempre presente “crítico interior”.
Norris verbaliza bem essa tensão:
-“Talvez às vezes me falte um pouco de autoconfiança, e já faltou no passado. Mas eu também sou assim. É a maneira como faço as coisas, é o que me tornou tão bom quanto sou e, talvez, às vezes, tenha me impedido de me tornar um piloto melhor.”
Aqui está a chave. O que nos levou até certo ponto talvez seja o que impede nosso próximo salto. Aquilo que chamamos de “jeito de ser” pode ser, sem percebermos, nossa principal limitação.
Ao olharmos pela lente do flow e da não dualidade, tudo isso se revela com clareza brutal e libertadora. Não somos um “eu” separado que precisa vencer, acertar, controlar ou provar algo. Somos Consciência. Uma só. Ininterrupta. Inteira. Quando essa verdade emerge — não como conceito, mas como percepção direta — o corpo/mente age sem a interferência do “eu que pensa”. E nesse espaço, o talento natural floresce. O silêncio é um canal. Não um vazio, mas a ausência do que nos fragmenta. Nesse silêncio, não há esforço. Há unidade. E na unidade, há potência. Isso é o estado de flow.
Piastri não venceu apenas a corrida. Venceu a mente. Venceu a ilusão de separação. E quando isso acontece, o carro, a pista, o piloto — tudo é uma coisa só. É como se a vida estivesse pilotando a si mesma. Sem resistência. Veja esse vídeo de Ayrton Senna, de 1998. Ele fala exatamente disso:
Ao atingir um estado de foco e intuição elevados durante as corridas, Senna se sentia profundamente conectado ao carro e à pista. Ele sugere aqui, exatamente o que se define por estado de flow, em que ele estava tão intensamente concentrado na tarefa em questão que parecia estar operando por instinto e não por pensamento consciente.
Ele descreve o circuito como um "túnel" durante sua sessão de qualificação recorde em Mônaco, indicando uma sensação de estar completamente imerso na experiência de dirigir.
Nas organizações, há muitos Landos— brilhantes, conscientes, mas atormentados por sua própria inteligência. Pensam demais, antecipam demais, duvidam demais. E poucos Piastris — silenciosos por dentro, presentes, fluidos, inteiros. Isso não é sobre perfil. É sobre estado.
Quem está em silêncio não é passivo. É preciso. Não corre contra o tempo. Corre com ele.
No fim, a curva mais difícil de fazer é aquela que dobra o pensamento e abre espaço para algo maior do que nós mesmos. E esse algo maior — chamemos de Consciência, Presença, Verdade — já está aqui.
Apenas esperando que a gente freie o barulho.
"Sim, bem, essa é apenas sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
