Estado de Flow e Liderança Além do Ego - Aprendendo com a F1
O pit stop da Fórmula 1, com suas impressionantes trocas de pneus em 1.8 segundos, vai muito além de uma demonstração de eficiência técnica.
1.8 segundos.
Quase um piscar de olhos. Esse é o tempo necessário para trocar os quatro pneus de um carro de Fórmula 1 durante uma prova. Para atingir essa performance extraordinária, as equipes de pit stop treinam incessantemente ao longo do ano e intensificam a preparação na semana que antecede cada corrida, realizando 70 a 80 repetições do processo em cada sessão de treino.
Presenciei essa dedicação numa quarta-feira que antecedia um Grande Prêmio no Brasil. Ao chegar no box da McLaren, a equipe já estava em pleno treinamento. Acompanhei o processo por mais de meia hora, e quando fui embora, eles ainda continuavam. O procedimento parecia simples e mecânico: uma parte da equipe empurrava o carro até o ponto de parada, enquanto outra trocava os pneus. O processo se repetia inúmeras vezes. Os pilotos? Ainda estavam no hotel.
A dedicação intensa dessas equipes tem um propósito claro: maximizar as chances de sucesso durante a prova, onde segundos podem determinar uma melhor posição, a vitória ou mesmo o campeonato. Um exemplo disso é o brasileiro Felipe Massa, que em 2008 perdeu pontos preciosos devido a um pit stop desastroso da equipe Ferrari no GP de Cingapura, resultando na perda do campeonato para Lewis Hamilton por apenas um ponto. Começava ali a longa trajetória de vitórias de Hamilton e seus sete campeonatos mundiais.
O pit stop transcende seu papel estratégico e se torna uma poderosa metáfora para o dia a dia das organizações. Nele, convergem elementos cruciais como planejamento, visão sistêmica, comunicação, tomada de decisão e, fundamentalmente, trabalho em equipe. Não por acaso, são frequentes as analogias com metodologias ágeis, Lean e Kanban.
A equipe desenvolve um profundo senso de pertencimento e apoio mútuo, materializando-se nas impressionantes marcas abaixo de 2 segundos. É nesse ponto que emerge o estado de flow. Em uma organização, equipes que operam nesse nível de sincronia inspiram admiração e servem de modelo. A interação entre seus membros e outras áreas se fundamenta naquilo que chamo de “cultura de flow” - ambientes onde a liderança é exercida coletivamente, respeitando diferentes perspectivas, sugestões, críticas e feedbacks. O Projeto Aristóteles, conduzido pelo Google em 2012, demonstrou como equipes que equilibram relacionamento, participação, sensibilidade e empatia alcançam resultados superiores.
A Fórmula 1 exemplifica perfeitamente essa cultura de flow. As organizações podem se inspirar - e já vêm fazendo isso - no momento mágico do pit stop (veja aqui), onde a performance pode significar vitória ou derrota. Nesse contexto, a liderança transcende o ego individual e se manifesta como um processo que permeia todo o grupo e suas relações.
Essa liderança além do ego reconhece que resultados, lucros e metas são consequências naturais de um ambiente onde o líder atua PELA equipe, não apenas para ou com ela, fomentando a criação e manutenção de um ambiente que potencialize um estado coletivo de flow e sucesso.
Em contraste, na liderança tradicional de "comando e controle", ainda presente em muitas organizações, o ego dos CEOs e líderes em diferentes níveis permanece em evidência. Esse modelo permeia até mesmo organizações que se autodeclaram inovadoras e ágeis. Nestes ambientes, o ego dos executivos e líderes manifesta-se de formas sutis e evidentes: desde a necessidade de serem os últimos a falar em reuniões, até a manutenção de símbolos de status e poder, como salas privativas e vagas especiais, criando distinções artificiais entre "líderes" e "liderados".
Essa liderança centrada no ego frequentemente se revela através de comportamentos como a dificuldade em admitir erros, a resistência a feedbacks críticos e a tendência a centralizar decisões importantes. Mesmo em organizações que pregam a inovação, não é raro encontrar líderes que, inconscientemente, sabotam iniciativas que não nasceram de suas próprias ideias - o chamado "complexo ou síndrome de NIH" (Not Invented Here - Não Inventado Aqui).
O modelo de comando e controle se perpetua através de estruturas hierárquicas rígidas, onde o poder decisório flui exclusivamente de cima para baixo, e a comunicação ascendente é filtrada por camadas sucessivas de gestão. Este sistema, herança da era industrial, continua sendo reforçado por práticas de gestão que privilegiam resultados de curto prazo em detrimento do desenvolvimento sustentável de pessoas e equipes.
Em ambientes assim, o ego da liderança manifesta-se também na necessidade constante de reconhecimento e visibilidade. Encontramos CEOs e executivos que transformam conquistas coletivas em narrativas pessoais de sucesso, apropriando-se de resultados que são, essencialmente, fruto do esforço conjunto de dezenas ou centenas de colaboradores. Líderes que cultivam cuidadosamente suas personas públicas, priorizando a construção de uma imagem externa em detrimento do desenvolvimento real de suas equipes.
Essa dinâmica egocêntrica cria um ciclo vicioso onde líderes intermediários, espelhando-se nos comportamentos da alta gestão, reproduzem os mesmos padrões em suas áreas. O resultado é uma cultura organizacional onde a política interna e a autopromoção frequentemente superam o foco no propósito coletivo e na entrega de valor real.
A transição deste modelo tradicional para uma liderança além do ego não é simples, mas é cada vez mais necessária em um mundo onde a complexidade e a interdependência demandam uma abordagem mais colaborativa e consciente. O pit stop da Fórmula 1 demonstra que é possível alcançar resultados extraordinários quando abandonamos o protagonismo individual em favor da excelência coletiva.
O paralelo com o pit stop é especialmente relevante em ambientes de alta pressão por resultados e competição intensa. A visão além do ego e uma cultura baseada no estado de flow, ampliam as possibilidades de melhor desempenho sem comprometer a saúde mental — aspecto crítico desde a recente pandemia. Considerando que dedicamos mais de 70% de nossa vida adulta ao trabalho, é fundamental que essa experiência seja significativa e valha realmente a pena. Não apenas uma troca entre seu tempo e o contracheque...
A liderança além do ego, fundamentada na ativação do flow, representa um caminho promissor para organizações e lideranças mais conscientes, forjando a “Cultura de Flow”. O estado de flow é nossa condição natural, frequentemente obstruída por pensamentos intermitentes e pela ilusão da separação — a crença de que somos entidades independentes buscando prosperidade individual sem considerar o todo.
Essa perspectiva limitada ignora que nossas "unidades" corpo/mente, com suas identidades e histórias particulares, são manifestações da mesma Consciência Fundamental — aquela que precede pensamentos e a necessidade compulsiva de solucionar problemas e dar nome às coisas, padrão ao qual fomos condicionados desde o nascimento.
Anterior à psicologia, ao mental, ao racional e ao intelectual, existe uma presença que percebe o próprio perceber. O estado de flow oferece vislumbres dessa realidade, e o momento do pit stop serve como catalisador dessa descoberta. Não surpreende que as principais equipes e times esportivos já incorporem o acesso ao estado de flow como ferramenta para otimizar performance, acelerar a aprendizagem e criar ambientes mais saudáveis.