A busca por compreender a natureza do "eu" e sua relação com o mundo tem intrigado filósofos e meditadores por milênios. Desde os tempos antigos, essa questão central motivou inúmeras tradições filosóficas e espirituais a explorar a essência da identidade e a sua conexão com tudo ao redor. No campo da psicologia, Mihaly Csikszentmihalyi trouxe uma contribuição significativa ao popularizar o conceito de "flow", um estado de profunda imersão e prazer experimentado durante atividades que exigem grande concentração e habilidade. Este estado é caracterizado por uma sensação de envolvimento total, onde as preocupações cotidianas se dissipam e a pessoa se entrega completamente ao que está fazendo.
Ampliando essa ideia, Loch Kelly, conhecido estudioso das técnicas de meditação, especificamente o Dzogchen Tibetano, psicólogo e autor, mergulha na interseção entre atenção plena e os estados de flow, introduzindo dois tipos principais: o flow de absorção e o flow panorâmico. Esses estados oferecem diferentes portas de entrada para a experiência de união com o momento presente e a transcendência do ego.
O flow de absorção, como o próprio nome sugere, caracteriza-se por um engajamento profundo e total em uma tarefa ou experiência. Durante esses momentos, o senso de tempo parece se distorcer, e a consciência do "eu" como entidade separada se dissolve.
É como ser transportado para um espaço onde apenas a atividade em questão importa. Imagine um músico completamente envolvido em uma performance, onde cada nota é vivida intensamente, ou um atleta tão focado na competição que nada mais parece existir. Nesses momentos, a experiência se torna tão intensa e gratificante que a sensação de "eu" como agente individual se esvai, dando lugar a uma fusão completa com a ação em si.
Por outro lado, o flow panorâmico oferece uma perspectiva diferente, embora igualmente profunda. Em vez da imersão total em uma atividade específica, o flow panorâmico se assemelha a um estado de consciência expandida, onde a atenção se torna ampla e receptiva como o céu em um dia claro.
Ele funciona como se déssemos um passo para trás, observando o vai e vem constante de pensamentos, emoções e sensações sem nos identificarmos com eles. Imagine um alpinista no topo de uma montanha, contemplando a vastidão da paisagem, ou um meditador experiente, que observa o movimento da respiração e as flutuações da mente sem se deixar levar por eles. Nesse estado, reconhecemos a natureza fluida e interdependente de todos os fenômenos, incluindo o próprio "eu", que se revela como parte de algo muito maior e interconectado.
A sinergia entre esses estados de flow e a anulação da ilusão de um "eu" separado do mundo é profunda e reveladora. No flow de absorção, a experiência direta do mundo e da ação se fundem de tal forma que as fronteiras entre "eu" e "não-eu" se diluem, revelando uma unidade intrínseca.
No flow panorâmico, a observação desapegada e a consciência expandida revelam a natureza interdependente de todos os fenômenos, mostrando que o "eu" não é uma entidade isolada, mas sim parte de uma complexa cadeia ou como uma teia de relações e interconexões.
Ao cultivarmos a atenção plena através de práticas como meditação, yoga ou outras atividades que promovam a presença e a consciência, podemos gradualmente acessar e integrar esses estados de flow em nossa vida cotidiana.
Essas práticas nos ajudam a desenvolver a capacidade de estar completamente presentes no aqui e agora, permitindo que experimentemos a vida com mais profundidade e significado. À medida que a ilusão de um "eu" fixo e separado se dissolve, experimentamos uma sensação de paz, conexão e liberdade, reconhecendo nossa verdadeira natureza interdependente e despertando para a riqueza da experiência presente.
A ação sem esforço, também conhecida como "ação correta" ou "Wu Wei" na filosofia taoísta, surge da compreensão da não dualidade e se manifesta vividamente através dos estados de flow. Quando transcendemos a ilusão do "eu" separado, agimos não a partir de um ponto de vista egocêntrico e controlador, mas sim em harmonia com o fluxo natural da vida. Wu Wei é o esquiador que esquece sua própria existência e se torna a montanha ou o arqueiro que se torna a flecha e sente que é impossível não atingir o alvo.
É colocar a vela no barco a remo. Ação sem esforço.
Essa mudança de perspectiva permite que a gente possa acessar uma forma de inteligência maior, que transcende o pensamento linear e limitado do ego. As respostas certas e as ações adequadas emergem naturalmente dessa conexão, como se fossem guiadas por uma sabedoria intuitiva.
Quando confiamos na inteligência intrínseca à nossa própria existência, as ações surgem no momento presente, sem que a gente se apegue excessivamente aos resultados O ideal é que não se pense neles. Isso transforma a maneira como vivemos e interagimos com o mundo, promovendo um estado de fluidez e flexibilidade.
No dia a dia, essa abordagem se manifesta através da intuição e de uma certa escuta interior. Em vez de forçar uma decisão ou ação, a quietude e a receptividade para escutar nossa intuição, são os melhores caminhos.
As respostas certas geralmente emergem quando o ruído mental é silenciado e a sabedoria do coração é sentida. A aceitação e a flexibilidade são fundamentais, porque nos permitem adaptar às circunstâncias em constante mudança, ajustando com suavidade e sem rigidez nossas atitudes.
Se as nossas ações estão alinhadas com nosso propósito autêntico, um propósito que vai além do ego individual, a energia flui naturalmente e o esforço se transforma em prazer. Isso traz eficiência e criatividade, porque eliminamos o desperdício de energia que é gerado pela resistência e pela dúvida.
Portanto, as ações que emergem desse estado são naturalmente mais conectadas com a compaixão e o olhar para o outro, conectadas a algo maior do que nós mesmos, o que contribui para o bem-estar coletivo.
A ação sem esforço ou o Wu Wei que comentei antes, não significa não agir, mas sim agir com o mínimo de resistência, alinhados com a inteligência natural da vida. É uma dança delicada entre ação e não ação, esforço e entrega, que se manifesta naturalmente quando nos reconhecemos como parte da unidade fundamental da existência. Essa compreensão nos permite viver de forma mais plena e harmoniosa, despertando para a verdadeira riqueza da experiência humana.
Na próxima edição, vamos detalhar um pouco mais o tema do Wu Wei.
Que texto rico! Há 8 meses eu tive uma epifania que me fez perceber que o monstro raivoso que habitava em mim era apenas um rio de águas volumosas que estava represado.
Apesar dessa consciência, eu sei que não explodi a represa (ainda), talvez por medo do que ela vai arrastar no processo. Mas abri uma comporta que dia após dia está ficando mais larga.
"Se as nossas ações estão alinhadas com nosso propósito autêntico [...] a energia flui naturalmente [...]."
Percebo isso agora. Seu texto é ótimo, obrigada.