Fragmentos de um instante que nunca chega
Um ensaio sobre presença, percepção e o fim da ilusão de separação.
O aqui, agora.
Quem já se debruçou sobre essa expressão muitas vezes evocada em momentos de silêncio, meditação ou presença, talvez ainda não tenha se dado conta de que tal momento, o “agora”, não existe como imaginamos.
Afinal, onde começa ou termina esse agora?
O “aqui” é simples - é o lugar onde estamos, sempre estivemos, sem esforço. Já o “agora” parece mais escorregadio: um conceito sustentado pela memória. Pense comigo - se não me recordo do que aconteceu, não me projeto para o passado; e se não imagino, também não antecipo o futuro. O tal do “agora” só pode ser reconhecido pela ausência de ambos.
É a partir dessa perspectiva que convido o leitor a imaginar que tanto o lembrar quanto o projetar estão ocorrendo exatamente aqui, neste instante. Mas esse instante não tem contornos fixos. Ele não começa nem termina. São fragmentos de percepção se dissolvendo e renascendo sem cessar, uma sequência infinita de pequenos “agoras”.
Ao me recusar a acessar o passado, por saber de sua natureza volátil, e ao não idealizar um futuro que é apenas projeção, só me resta isso: este momento. E este. E este.
Reconhecer essa possibilidade me traz certo alívio. Quando presto atenção em tudo o que está ao meu redor, em todos os seus detalhes, ritmos e sutilezas, tenho a sensação de estar verdadeiramente vivendo. A realidade do “Eu sou” não ultrapassa isso: este corpo escrevendo, este lugar onde estou agora, esta sequência encadeada de momentos que compõem a única realidade possível.
Às vezes, me percebo de outro lugar, observando a mim mesmo datilografando em uma máquina de escrever antiga, sentindo a temperatura da sala, o peso do meu corpo sobre a cadeira giratória, a tensão nos dedos a cada toque nas teclas, o movimento dos braços metálicos imprimindo letras no papel branco. Tudo isso vai formando esta ideia que tento compartilhar. E ao fazer isso, dissolvo a ilusão de que eu escrevendo aqui e você lendo aí somos entidades separadas.
Não somos dois.
Somos um só. Uma Consciência desperta, presente o tempo inteiro, múltiplas formas, visões, valores, todos moldados por condicionamentos, narrativas, heranças que não começamos. Nenhum pensamento é originalmente meu. Nenhum pensamento é, de fato, real. Por consequência, nenhuma emoção tampouco. São apenas eventos atmosféricos da mente como são ventos, nuvens, chuvas ou períodos de estiagem.
No começo, tudo parecia simples. Eu sabia quem eu era, sabia quem eram os outros ao meu redor. Desde cedo, desenvolvi um senso de separação, quase um isolamento - que me fazia definir fronteiras: até onde eu podia ir, e até onde os outros poderiam entrar. Minha timidez reforçava esse contorno.
Percebi logo que havia algo diferente no meu modo de ver o mundo, de pensar, de me proteger. Mas ainda não se tratava de um posicionamento claro. Era mais um pressentimento, um terreno ainda envolto em neblina.
Nesse aspecto, tive sorte. Nasci curioso. Um explorador desde sempre. Essa inclinação me trouxe descobertas, alegrias, mas também alguns arrependimentos que por anos carreguei, sem saber que eram apenas isso: pensamentos sem raiz, sem origem, inúteis.
Demorou até que eu reconhecesse isso.
Naquela época, eu ainda não era Cadu, apelido que recebi quando fui trabalhar como locutor na extinta rádio Manchete FM. Eu era simplesmente Carlos Eduardo. Um nome que sempre me pareceu formal demais, como se criasse uma distância entre mim e o outro. Nunca tive apelido.
Mas tudo isso iria mudar.
E traria uma avalanche de experiências desafiadoras.
A avalanche não veio com estrondo.
Não foi uma ruptura visível, foi um acúmulo. Pequenas desestabilizações, vontades que nasciam e morriam sem se realizar, como se a vida estivesse me convidando, silenciosamente, a abandonar o personagem que eu ainda mal tinha aprendido a interpretar.
A primeira rachadura veio com o incômodo. Não externo - interno. Alguma coisa em mim começou a estranhar o que sempre pareceu familiar. As certezas foram se tornando hipóteses. As opiniões, ensaios. E as verdades, apenas versões transitórias.
Fui deixando de acreditar no que pensava. E isso não me paralisou , ao contrário, me libertou.
Passei a observar. Não mais como quem busca controle, mas como quem aceita o mistério. Comecei a reconhecer que por trás do meu nome, da minha história, das emoções que oscilavam como marés, havia algo silencioso, algo anterior. Uma presença sem forma, sem pressa, sem necessidade de ser alguém.
Aos poucos, aquilo que parecia tão sólido, identidade, carreira, ideias, afetos, tudo começou a perder peso. Não era desprezo, mas lucidez. Nada disso era “eu”. Era tudo conteúdo. Movimento. Fluxo. E eu, a consciência que testemunhava.
Por um tempo, tentei dar forma a isso. Quis explicar, conceituar, traduzir. Era cedo. O ego, como sempre, ainda tentava capitalizar a experiência. Mas, com o tempo, fui me rendendo. Fui reconhecendo a beleza de não saber, a paz de não precisar provar nada. O sossego de apenas estar.
Hoje, quando olho para trás, se é que isso faz sentido, não vejo um percurso linear, nem uma biografia edificante. Vejo camadas sendo desfeitas. Personagens sendo dissolvidos. Crenças despencando. E, em meio a tudo isso, um fio silencioso que nunca se rompeu: a consciência que percebe.
Talvez seja isso o que chamam de despertar. Não uma conquista, mas um esvaziamento, que prefiro atribuir ao processo de “relembrar” a nossa real natureza sempre presente. O fim da ilusão de que houve um eu a ser defendido.
Mas não se trata de um fim, é só mais um “agora” que se desfaz — enquanto outro nasce.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
Gracias CADU. “es sólo otro “gracias” que se desvanece, mientras otro nace.” Instante a instante. Abrazo eterno. 🙏🏼