Fronteiras Dissolvidas: Quando Somos o Flow
O estado de flow, ou fluidez como primeiro passo para acessar a Não Dualidade.
Sabe aquele momento em que você está tão concentrado, imerso, em alguma atividade prazerosa, que pode ser um esporte, um hobby, uma tarefa do trabalho ou de arte, criatividade, até mesmo uma conversa com alguém que faz você se perder no tempo e no espaço? Nada em volta, só aquilo?
No esporte, alguns relatos mostram que o atleta nem percebe como conduziu determinada jogada, como se seu corpo soubesse exatamente o que fazer sem a intervenção consciente da mente. Um jogador de basquete que faz uma sequência de dribles perfeita e nem consegue explicar depois como antecipou os movimentos dos adversários. Veja aqui, o grande Michael Jordan em ação. Ou um surfista que, ao pegar uma onda perfeita, relata ter sentido como se ele e o oceano fossem uma coisa só, sem decisões conscientes sobre cada movimento, tudo fluindo sem interferência. Ou ainda um autor que não se lembra de escrever certas passagens em seu texto, como se as palavras tivessem simplesmente surgido através dele, sem esforço deliberado (acontece comigo com frequência).
O estado de flow, conceito desenvolvido pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, representa esse momento de imersão total, onde habilidade e desafio se equilibram perfeitamente, criando uma experiência de concentração sem esforço. Parece que perdemos a noção de tempo, de ego, e nos tornamos um espaço inteiro para a atividade em si. As atividades do córtex pré frontal (onde se projetam julgamentos, análises, racionalizações) começam a diminuir, dando lugar a emoções, memórias, insights vindos de outras áreas do cérebro.
Não há separação entre o que somos e o que estamos fazendo - o pianista e a música se tornam um só, o fotógrafo e a cena fotografada se fundem em uma única expressão. Um exemplo marcante é o do músico de jazz em pleno improviso, a “jam session” que descreve como se as notas "escolhessem a si mesmas" e ele fosse apenas um observador do que suas próprias mãos estão criando no instrumento. Mais exemplos na música poderiam ser os repentistas do Nordeste ou as competições de rap.
Essa sensação é bastante similar aos relatos de quem teve vislumbres ou momentos de clareza e entendimento no que chamamos não dualidade ou a percepção da nossa real natureza. Na não dualidade, a percepção da separação entre observador e observado, entre o "eu" e o "outro", dissolve-se momentaneamente. É uma experiência de unidade com tudo que existe, onde a mente conceitual que dá nomes, categorias e divide o mundo em partes separadas se desliga, permitindo uma percepção direta da realidade sem filtros.
Quem gosta de fazer trilhas por exemplo, já pode ter experimentado na caminhada, no vale, na montanha, ao contemplar a vastidão da paisagem, a súbita sensação de se sentir parte integrante dela, sem separação – as árvores, o céu, os pássaros e seu próprio corpo tornando-se expressões diferentes de uma mesma realidade indivisível. Pode ser um ‘flash’, muito rápido, mas a sensação é cristalina.
Ambas as situações, o flow e a não dualidade, têm aspectos muito parecidos nas descrições daqueles que puderam ter esse momento de entrega.
Entrega aqui é uma palavra chave, especialmente porque se somos de fato conectados todos à uma só Consciência, como manifestações individuais da mesma, basta perceber que apenas estamos acessando este grande vazio que tudo abraça e que vai conduzir ou permitir que aconteçam as circunstâncias ideais para que acessemos o todo.
Nossa mente condicionada está constantemente criando narrativas, julgamentos, preocupações com o passado e o futuro e essa atividade mental incessante nos desconecta do momento presente, onde a vida realmente acontece. Tanto no flow quanto na não dualidade, essa tagarelice mental diminui ou cessa por um tempo, permitindo uma experiência direta e não mediada da realidade. Pense no arqueiro zen que, no momento de soltar a flecha, não está pensando "agora preciso mirar melhor" ou “não posso errar desta vez" – ele simplesmente é o arco, a flecha e o alvo em perfeita unidade. Este livro, dá uma boa ideia desse sentimento e dessa condição.
Quando percebo essa unidade, tenho a possibilidade de mover minha atenção para a região do coração ou plexo solar e deixo de ser tão mental e limitado aos meus pensamentos como se eles fossem a definição de mim mesmo e sim, passo a acessar emoções e intuições - que são a forma como a Consciência se comunica com cada "unidade" corpo/mente que todos somos. Nesse momento, acontece um ‘bypass’, eu ignoro simplesmente o meu ego, que passa a exercer a sua real função, de ser apenas uma ferramenta de apoio em momentos de busca de solução ou planejamento. Para que a intuição se desenvolva, ela deve ser desimpedida pelo ego e no estado de flow ou na percepção da não dualidade, isso acontece naturalmente, através do fenômeno da ‘hipofrontalidade temporária ou transitória’1
Muitas tradições espirituais apontam para o coração como centro da sabedoria intuitiva, em contraste com a mente analítica localizada na cabeça. Quando desloco meu centro de percepção do cérebro para o coração, começo a experienciar um conhecimento direto, não conceitual, que vai além do pensamento lógico, linear. As emoções, quando experimentadas com presença e sem apego, se transformam em canais para esta sabedoria mais profunda, uma linguagem através da qual a Consciência maior nos guia. O coração tem neurônios e existe uma constante comunicação entre ele e o cérebro.
Um exemplo concreto disso é extremamente comum e provavelmente você já viveu algo parecido. Eu passei alguns dias tentando criar uma nova palestra através do raciocínio lógico, pesquisas sobre o tema e nada. Não havia como puxar um fio para aquele trabalho se desenvolver. Branco total.
Quando "desencanei" da história, enquanto fui dar uma caminhada inesperadamente, recebi a ideia como um insight já prontinho para ser usado– o famos momento “Aha!” ou o Eureka de Arquimedes…
E você, quantas ideias boas ou soluções não vieram enquanto você tomava um banho?
Este entendimento transforma e faz com que seja impossível não enxergar o mundo e a vida de outra forma completamente diferente a partir daí. As prioridades mudam, os problemas do dia a dia mudam de perspectiva (como tudo, o tempo todo, muda), e uma sensação profunda de paz e conexão pode surgir no meio dos desafios da vida.
No meu caso, até que o entendimento disso tudo surgisse, algumas questões do meu trabalho quando eu era executivo, eram extremamente entediantes, rotineiras (eu sou um 7 no Eneagrama e quem conhece o sistema sabe o que a rotina significa para mim). Eu tinha que manter o foco, a concentração e tarefas menores enquanto esperava pelo fim de semana (quem nunca?); agora, encontro beleza e presença mesmo nas tarefas mais simples - e chatas -, como organizar meus arquivos físicos e digitais ou responder e-mails, colocar o lixo para fora, alimentar os cachorros, cada ação se torna uma expressão da Consciência em movimento.
Ou ainda - e não tenho problemas em revelar isso - após anos alimentando ressentimentos contra familiares ou conhecidos, subitamente perceber que tanto eu quanto as pessoas que me magoaram são manifestações da mesma Consciência – e isso não como racionalização mental, um conceito intelectual, mas sim como uma compreensão visceral, instintiva, que dissolve o ressentimento em compaixão e aceitação da realidade como ela é.
O acesso ao estado de flow, quando entendido em sua totalidade, permite ao explorador da Consciência ir além, se aquietando então, não sofrendo mais. Não vivemos a vida, é ela que nos vive. O que acontece é o que tem que acontecer, sem um pingo de interferência nossa.
Nesta rendição ao momento presente, encontramos inesperadamente, nossa maior liberdade. O ego passa a ser ferramenta de apoio e fica sem força de lutar contra a realidade que se apresenta como é, o que É. Simplesmente isso. Economizaríamos muito tempo, energia e sofrimento ao perceber que as coisas mudam o tempo todo e muitas delas, que relutamos aceitar ou não nos conformamos, podem ser o prenúncio de momentos de transformação.
Quando abandonamos a ilusão de haver controle e sermos separados, abrimos espaço para que a inteligência universal opere através de nós com fluidez e eficiência. Os chineses já sabiam disso há muito tempo, chamam de Wu-Wei. O sofrimento, que surge principalmente quando resistimos à realidade presente, os pensamentos constantes nos gatilhos desse sofrimento, diminui naturalmente trocado imediatamente por uma aceitação profunda que não é passiva ou resignada, ao contrário, plenamente alinhada de forma Consciente com o fluxo natural da vida.
É nesse momento que a vida finalmente respira através de nós sem impedimentos. A mente tagarela se aquieta e percebemos – não com a mente, mas com todo o nosso ser (físico, mental, instintivo) – que nunca estivemos separados de coisa alguma. A vida está vivendo através de nós, não por nós.
E agora, quando caio naquela velha tentação de controlar tudo, de sofrer antecipadamente, de lutar contra a realidade que se apresenta, alguma coisa em mim reconhece o padrão e dá um leve sorriso de canto de boca. Sei que posso simplesmente soltar, entregar, confiar. Posso mover minha atenção do turbilhão mental para o espaço do coração, onde a intuição e a clareza natural sempre estiveram esperando.
Este é o convite que faço a você que me lê: experimente essa entrega. Não como uma rendição passiva e conformada, mas como um despertar ativo para o que você já é. A Consciência já está aqui, já é você, já está fluindo.
Basta perceber e deixar acontecer.
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Nosso cérebro, por mais sofisticado que seja, às vezes precisa “silenciar” certas áreas para funcionar da melhor forma. Pense na hipofrontalidade transitória como o botão de pausa estratégico do cérebro, especialmente em suas regiões frontais. “Hipo” significa abaixo e “frontalidade” refere-se ao lobo frontal do cérebro, principal responsável pelos pensamentos sequenciais, lógicos, tomada de decisões e autoconsciência. Durante a hipofrontalidade transitória, o cérebro reduz temporariamente a atividade nesta área.
Agora, para entender melhor o que acontece internamente, imagine as ondas cerebrais como batidas de música. Há a batida acelerada das ondas beta quando estamos alertas e lógicos, e depois há o ritmo mais lento e harmonioso das ondas alfa, muitas vezes ligadas ao relaxamento, criatividade e à hipofrontalidade transitória. Essas ondas particulares tomam a dianteira durante esse estado, permitindo-nos explorar um reservatório de criatividade e intuição.
Com o lobo frontal ficando em segundo plano, outras partes do cérebro têm seus momentos solo, promovendo maior criatividade e redução da autoconsciência. É aqui que a magia do estado de fluxo acontece. Sem o constante excesso de pensamento e dúvidas que muitas vezes nos afligem, podemos mergulhar mais fundo nas tarefas, deixando que nossas habilidades e instintos nos guiem.
Assisti uma palestra do Csikszentmihalyi no início dos anos 2000. Os estudos e publicações dele sempre foram uma inspiração para mim. Muito interessante ver a aplicação prática da forma com que você vem fazendo.