Existe uma força discreta que insiste em nos trazer de volta ao centro da nossa identidade, ou o que chamamos de “eu”mesmo depois que lembramos que essa identidade separada é ilusória. Não é resistência, é apenas o mecanismo natural da mente tentando permanecer em movimento. A cada vez que acredito ter me libertado dessa força, percebo que a liberdade também pode ser um papel, mais um entre tantos que o nosso ego aprende a representar.
A força do ego age como uma gravidade constante que mantém o personagem em órbita. Invisível, silenciosa, precisa. Podemos passar dias inteiros em paz (adoraria), acreditando que o centro se desfez, que o “eu” se dissolveu de vez, até que uma lembrança, um gesto ou uma comparação mínima reinstale o movimento que entra em loop novamente. Quando isso acontece, nem sempre percebemos de imediato. Só notamos quando a tensão retorna, aquele aperto sutil no peito, o pensamento que mede nossa “relevância” ou tenta justificar algo que não precisa de explicação. É a mente retomando o comando, o sistema reiniciando sozinho, querendo se certificar de que ainda há alguém aqui.
Depois do meu vislumbre da nossa realidade não dual, aquele instante em que o que vê e o que é visto se fundiram num só reconhecimento (leia mais aqui), tive certeza de que o ego havia perdido a força. Acreditava que, uma vez atravessado o espelho, não haveria mais retorno. Mas a mente é engenhosa, e o ego, paciente, perseverante, não desaparece; se reorganiza. Assume novas formas, fala a língua do entendimento, cita mestres e usa o discurso do desapego. É o mesmo velho impulso por trás de novas roupagens, tentando sobreviver em um ambiente onde já não há tanto espaço para ele.
Esses retornos são cada vez mais espaçados, mas quando vêm, são evidentes. A comparação ainda acontece, o impulso de ser reconhecido ainda ressurge, o reflexo de querer me provar ou defender uma opinião ainda aparece. A diferença é que agora não dura, é possível perceber o movimento. E no instante em que é percebido, perde o poder de novamente nos arrastar. Antes, eu era o movimento. Agora, ele acontece dentro de mim, e passa.
Outro dia, durante uma conversa num podcast, me perguntaram o que havia mudado depois da “lembrança” do flash de percepção que experimentei. Respondi que nada havia mudado. Apenas havia deixado de levar tudo tão a sério. Continuo vivendo as mesmas situações, os mesmos desafios, os mesmos impulsos, mas algo se deslocou. Sinto uma leveza que não vem da ausência de conflito, mas da incapacidade de acreditar nele. O ego continua tentando participar, mas não tem mais palco.
O que antes me tomava por inteiro e por vezes me cegava, agora é apenas um ruído distante. Ainda ouço, mas não escuto. O pensamento surge, cria a história, e morre rápido. Quando me dou conta (cada vez com mais frequência, felizmente), noto que a presença silenciosa que sempre esteve ali continua intacta, sem precisar intervir, sem corrigir nada.
Romper com a gravidade do ego vem por conta de um desinteresse crescente pelo jogo de cena que chamamos de “vida”. O teatro, não a vida em si que é magnífica por si só. A mente tenta manter o personagem no centro, mas com o tempo, o próprio esforço se torna cansativo. A atenção se amplia, a identidade se dissolve nas bordas, o que sobra é o espaço que sempre sustentou tudo.
A verdadeira liberdade talvez possa se acessar ao não se libertar de nada, apenas perder o impulso de se defender. A mente continua atuando, o corpo continua reagindo, mas há algo mais amplo assistindo, sem pressa, sem expectativa. O ego se manifesta, fala, gasta energia, e se recolhe. Nenhum problema.
A maturidade espiritual - se é que esse nome serve, talvez só maturidade já fosse suficiente - não é eliminar o ego, mas retirar o filtro da importância dele. Ele não é inimigo nem obstáculo. É apenas parte do funcionamento desse “sistema operacional”. No momento em que o interesse por suas próprias histórias desaparece, o personagem se esvazia, e o silêncio retoma o comando.
Nesse ponto tudo fica mais simples.
A mente fala, o mundo gira, a Consciência observa.
Nada mais precisa ser corrigido.
Às vezes penso que o ego não é o problema, é apenas o lembrete de que ainda há algo em mim que quer continuar existindo. Talvez o verdadeiro descanso seja permitir que ele exista, sem acreditar tanto nas histórias que conta.
Nenhum autor é dono do que escreve, apenas o tradutor do silêncio que o antecede. Escrever foi o modo que encontrei de investigar o que somos quando a mente se aquieta. Cada texto nasce desse movimento silencioso da consciência tentando se reconhecer em forma. Às vezes surgem palavras, outras apenas o espaço entre elas. Não escrevo para explicar nada, escrevo para lembrar. A ficção, a ciência e o cotidiano são apenas pretextos. O que fala por trás é o mesmo silêncio que lê.






