Memórias de um futuro imaginado
Reflexões sobre a morte e a Consciência. Ensaio da Fronteira Interior
A morte sempre foi um mistério para o ser humano, mas para mim, sempre houve um componente mais instigante: afinal, o que acontece depois?
Será que tudo simplesmente some e se transforma num enorme espaço vazio todo branco ou todo preto, sem nenhuma fronteira ou limitação, um infinito de nada? Como quando fechamos os olhos em um quarto completamente escuro, mas sem nem mesmo a consciência de que estamos ali? Ou, como meu ego preferia acreditar, tudo começaria de novo, em outro lugar com outro corpo, outro nome e outra história? Como se a morte fosse apenas uma porta para uma nova vida, onde talvez eu fosse uma criança em outro continente, ou até mesmo alguém com interesses completamente diferentes, como um artista quando antes fui um executivo?
Nunca acreditei naquela história que nos contam desde crianças que se for bonzinho vai para o céu, mas se não for, o fogo do inferno te aguarda... Aquilo sempre me pareceu uma fantasia de mau gosto e não sei explicar, mas eu nunca fui muito chegado às fábulas do La Fontaine e congêneres. Tentar controlar comportamentos através do medo, como fazem com crianças quando dizem "se não comer toda a comida, o bicho-papão vem te pegar" é uma das maiores crueldades que conheço. Mas ainda assim, havia uma profunda inquietação com relação a este tema, que só se resolveu muitos anos depois, com um entendimento sobre a Consciência.
O que nasce e morre é este “artefato” corpo/mente que ganha um nome ao nascer e acredita nas histórias que contam para ele, de como ser um humano que possa atravessar as agruras da vida se defendendo da maldade e hostilidade do mundo. Nossos pais aprenderam assim, os pais deles também, os pais dos pais deles e assim por diante, você pegou a ideia. É uma transmissão ancestral de medo e separação, passada de geração em geração como se fosse uma verdade absoluta.
Quando pensamos nessa miragem de sermos um "eu" independente e que precisa se defender do mundo, nossos problemas começam e tendem a aumentar e piorar ao longo do tempo. É a mesma condição de acreditarmos que nosso valor está atrelado a conquistas, bens ou aprovação dos outros, e nos tornamos escravos dessa busca interminável e inútil.
Uma sociedade que estimula a competição não consegue reverter a tendência de achar que o outro é o inimigo, o concorrente e sempre quer alguma coisa de mim. Preciso me defender. Essa história começa logo depois dos nossos ancestrais caçadores e coletores, com o conceito de propriedade, que nasce com a agricultura. Vemos isso claramente nas escolas onde crianças são ensinadas a competir por notas, a admissão na faculdade, no programa de estágio, no programa de trainee, até chegar na empresa, onde colegas disputam promoções e poder. Isso segue acontecendo até mesmo nas relações pessoais onde competimos por atenção e reconhecimento. Em nenhum momento fomos preparados a entender que ninguém faz nada sozinho, que precisamos do outro.
Há uma mínima possibilidade de minimizar os efeitos dessa hipnose coletiva - o que só pode acontecer se, somente se, rompermos com a resistência natural de só acreditar naquilo que pode ser tocado e provado cientificamente. O materialismo foi bom enquanto durou, é preciso que se dê oportunidade para um questionamento de suas crenças e do jeito como as coisas sempre foram feitas. Perceber que a Consciência pode não estar e nem ser fruto do nosso cérebro, dentro do nosso corpo, é um bom primeiro passo.
Para isso, recorro a quem estuda isso há muito tempo e defende a tese do idealismo de forma cabal, me refiro aqui a Bernardo Kastrup, Donald Hoffman e Thomas Metzinger, por exemplo. Leia os artigos no rodapé deste ensaio sobre suas teorias e comece a formar sua própria opinião. Kastrup, por exemplo, propõe que a consciência não é produzida pelo cérebro, mas que o cérebro é um mecanismo de dissociação dentro de uma consciência maior, como uma antena que capta, mas não cria, o sinal.
“Começar de novo”, nome da conhecida música de Ivan Lins, sucesso nos anos 80. Começar de novo. Pode ser a chave para a inquietação mental, do desespero de se arrepender e ficar remoendo alguma coisa que não deveria ter sido feita, mas, tarde demais. Já aconteceu. Como aquela vez em que dissemos palavras duras a alguém que a gente ama e não temos como voltar atrás, ou também quando perdemos uma oportunidade única por medo ou indecisão. Quantas vezes já passamos por isso?
Se há uma coisa certa na busca que o ser humano empreende pelo significado da vida, pelo sentido de estarmos aqui, é que já somos. Eu sou. A única certeza que habita meu coração. Todo o resto é suposição e palpite.
Isso quer dizer que estou aqui e agora. O passado, aquele monstro que me causava arrependimentos e angústias, não existe mais. Como um filme que terminou, a tela está em branco, mas continuamos sentados na sala escura, repassando as cenas em nossa mente.
O que existe é a ruminação daquela situação constrangedora ou avassaladora de algo que não deveria ter sido feito ou dito, alguma coisa que não deveria ter acontecido e, portanto, aquele filme rodando em looping na minha mente, me deixando em constante estado de desespero por não ter como fazer uma flecha atirada voltar para o arco.
Mas, de novo, aquilo não existe mais. Mas ainda sobra a minha ruminação mental, revendo o filme em loop infinito, contando a mesma história para mim mesmo mais uma vez. O fato é que esse filme, essa história me visitando a cada minuto, é só isso, uma história. Não é real, mas parece ser porque está acontecendo agora, na minha mente, de novo e de novo, me sequestrando da realidade, do momento presente, o único que realmente existe. É como um aplicativo de navegação que insiste em mostrar o caminho por onde você já passou, em vez da estrada à sua frente.
Revisitar passados que trazem dor e arrependimento é a causa do nosso maior sofrimento - em paralelo com o hábito de ficar imaginando futuros melhores; ou alimentando a esperança de corrigir alguns erros do passado. Ora, se só existe o presente, o truque aqui, um "bypass" no ego, é começar de novo. Como se nada houvesse, porque realmente não há nada lá atrás.
Essa atitude de recomeçar nos coloca numa condição de reset e, portanto, de novas possibilidades, ainda que estas possam trazer outros sofrimentos. Mas quando entendermos que tudo é como deveria ser, nada está errado, estaremos simplesmente seguindo o fluxo da vida, não apenas conectados, mas como partes da Consciência desperta que abraça tudo.
Uma gota d'água, uma chuva ou uma tempestade, quando caem no oceano, não deixam de existir, mas se tornam a mesma substância de um todo do qual sempre fizeram parte.
Explorando o Realismo Consciente e a Teoria da Interface da Percepção de Donald Hoffman
Donald Hoffman é professor de Ciências Cognitivas da Universidade da Califórnia, em Irvine, e autor de Visual Intelligence: How We Create What We See e coautor de Observer Mechanics: A Formal Theory Of Perception, entre outros.