Outro dia, num bate-volta ao Rio, me dei conta de como é frágil a ideia de deslocamento. Entramos num avião, decolamos, pousamos, e logo acreditamos ter nos movido de um ponto a outro no mapa. Mas quando se olha com atenção, não há deslocamento algum. Apenas o cenário muda diante dos olhos, como um filme que troca de cena, enquanto aquilo que percebe continua intocado, imóvel.
Foi nesse instante que me veio, mais uma vez, o pensamento que insiste em voltar: o maior dos nossos enganos é acreditar na separação. O hábito de imaginar que somos o sujeito isolado, rodeado por objetos que não passam de pano de fundo para a nossa existência. Dentro dessa crença, o “eu” se instala no centro, e o mundo se torna apenas o entorno. E é desse pequeno desvio de perspectiva que nasce a arrogância que atravessa a história humana.
Todas as civilizações, sem exceção, ergueram-se sobre essa ilusão. Povos inteiros desapareceram, outros surgiram, mas a lógica permaneceu: um “eu” de um lado, o mundo do outro. Essa cisão sustenta religiões, filosofias, sistemas econômicos, e até as tecnologias mais modernas. Mudam os nomes, os rituais, os artefatos, mas a raiz segue intacta. O autocentrismo sujeito–objeto é a única tradição que nunca caiu.
No voo, céu limpo, assento à direita na ida e à esquerda na volta, vi Paraty, a Restinga da Marambaia, Ilhabela surgindo nítida. Não serviram nem água, mas não fez falta. Encostei o livro no colo, coloquei o álbum mais recente do Chip Wickham no fone e deixei que o jazz moderno, elegante e irônico, fosse o pano de fundo das minhas divagações. E então a constatação se impôs: eu partia de uma cidade e chegava a outra, mas estava sempre aqui. O tempo do voo, sejam quarenta e cinco minutos ou quatro horas, era irrelevante. O tempo seguia sendo agora.
“O deslocamento é apenas cenário. O que percebe nunca se move.”
Demorou anos para que essa percepção se revelasse. Eu sou o artefato corpo-mente que imagino ser, mas sou também o espaço em que esse artefato aparece. O que chamo de mundo não acontece fora de mim, mas em mim. A distinção entre interno e externo é apenas um truque da linguagem, nunca da realidade. Tudo é uma mesma coisa. É como olhar para uma onda e acreditar que ela é algo distinto do oceano, quando nunca deixou de ser água.
Esse vislumbre não é agradável para a mente. Palavras tropeçam quando tentam descrevê-lo, e o ego logo se apressa em rejeitar. Afinal, o que sobra de uma identidade construída durante anos se a separação for apenas uma ficção? A mente prefere teorias bem montadas, explicações que a façam se sentir segura. Mas o que está por trás não pede teoria, não pede esforço, não pede provas. É intuição pura, silenciosa, um saber que se impõe quando deixamos de lado a necessidade de sustentar o personagem que acreditamos ser.
E é aqui que a ilusão se rompe. Não há viagem, não há sujeito de um lado e mundo do outro.
Há apenas isto, inteiro, agora.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski