O 'Eu': Ilusão, Tempestade e Reboot Existencial
Aquilo que você chama de identidade é só software rodando em segundo plano.
Dizer “eu” parece natural. Desde cedo aprendemos a apontar para o corpo e afirmar: sou eu. Aprendemos a dizer: “minhas ideias, meus sentimentos, minha vida”, como se houvesse um dono por trás de tudo. Esse self, essa identidade que carregamos como se fosse um crachá, dá a sensação de que somos alguém separado, diferente e isolado do resto.
A psicologia costuma falar em self, a filosofia preferiu inventar nomes mais rebuscados, e a religião pintou a mesma questão com tintas diferentes. Mas no fundo, aquilo que chamamos de eu ou identidade é só uma maneira rápida de encerrar a conversa. Ora, não é óbvio? Eu sou o fulano, gerente de vendas da empresa xpto. Parece convincente, mas é só um truque do ego que prefere etiquetas fáceis ao silêncio do que não pode ser dito.
Penso nesse “eu” como uma tempestade. Damos esse nome forte, quase definitivo, mas “tempestade” não existe de verdade. O que existe são ventos, raios, trovões e chuva. Cada elemento é separado e independente, mas quando estão juntos inventamos um nome único e pronto, já nos damos por satisfeitos e nem pensamos mais no que é realmente aquela experiência. Pense numa árvore. Pronto, nem precisa prestar atenção se houver alguma à sua volta, ora árvore é árvore. O mesmo acontece com a persona que defendemos.
Na prática, esse personagem ou ego, funciona como um sistema operacional. Desde cedo vamos instalando programas: frases repetidas em casa, regras que a escola nos empurrou, medos emprestados da cultura, expectativas alheias, agindo tal qual um programa cheio de códigos, crenças e valores que fomos baixando sem pensar, aceitando os “termos de uso” sem ler (mas você não faz isso quando instala um aplicativo, ou faz?). Tudo isso é amarrado num pacote, numa embalagem nesse “aparato” corpo/mente chamado de eu. A etiqueta dá a sensação de substância, e acreditamos que há uma entidade sólida atrás disso.
A separação é só uma ilusão bem contada.
Imagine que nascemos com um óculos de realidade virtual grudado no rosto. O problema é que esquecemos que o programa está rodando e passamos a acreditar que a imagem da tela é a vida em si.
Quando alguém tira esses óculos ou os tem arrancados por alguma situação extrema da vida, o primeiro impacto não é paz, é choque. A luz verdadeira incomoda, machuca os olhos. Platão já mostrou isso no mito da caverna: quem sai das sombras não encontra de imediato um céu claro, mas o incômodo de perceber que tudo o que parecia real não era.
O reboot do sistema é exatamente isso, uma espécie de morte simbólica. Não se trata de apagar memórias nem de atualizar o sistema operacional para uma nova versão mais sofisticada do eu. É parar de rodar o programa inteiro. O reboot limpa as ilusões acumuladas e expõe aquilo que sempre esteve ali, mas que nunca tinha sido visto sem o filtro.
E a vida cotidiana entrega as falhas desse filtro o tempo todo. Bebo um copo d’água e aquilo que era “fora” passa a correr dentro das minhas veias. Onde está a fronteira entre eu e mundo? Alguém me elogia ou me critica e, em segundos, meu estado interno muda. Uma memória de uma situação vivida lá atrás, tem o mesmo efeito. Se esse eu fosse tão sólido e autônomo, como poderia ser alterado tão facilmente pelo olhar de outro, por um pensamento fugaz?
Ainda assim, defendemos o personagem com unhas e dentes como já disse Morpheus a Neo em Matrix.
O autor britânico Richard Sylvester escreveu de forma provocadora sobre isso em seu livro “I Hope You Die Soon”. Mas essa morte não é a do corpo, é a morte do falso eu, da identidade condicionada e obediente. É a morte do personagem que carregamos a vida inteira sem notar o quanto era artificial.
Quando as histórias pessoais se esgotam e paramos de sustentar a fantasia de que somos o passado acumulado e o futuro imaginado, sobra silêncio. Esse silêncio parece vazio no começo, mas vazio de quê? Das ilusões, ruminações do passado ou projeções do futuro. O que sobra não tem nome e não pode ser colocado em discurso. Não é algo a ser alcançado, não entra no currículo, não pode ser transformado em troféu. É só o que sempre esteve aqui, antes de qualquer personagem.
Essa morte simbólica é mais rendição do que conquista.
O reboot acontece quando paramos de sustentar a ficção, quando as histórias pessoais não conseguem mais nos convencer, quando a identidade já não se aguenta em pé e finalmente, sobra o vazio, o espaço, o silêncio. Aqui, não há dentro nem fora, não há eu e mundo. Só há o que É.
O tal eu, o self, a identidade, é só um ruído disfarçado de tempestade. A vida real não precisa desse nome para acontecer.
No fim, só resta tirar os óculos e deixar a tela apagar.
A realidade nunca esteve atrás da lente.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski