Estou sentado aqui, nesta tarde de janeiro de 2025, e minha mente volta no tempo, para uma lembrança que parece tão nítida como se fosse ontem.
É uma tarde de outono no final dos anos 90, e de repente me vejo de volta àquela fazenda, um lugar que parecia existir fora do tempo comum, um refúgio do mundo lá fora, onde eu estava hospedado.
O cheiro no ar é uma mistura da safra de café espalhada no terreiro para secar e, ironicamente, terra molhada, resquícios da chuva da noite anterior. Estou deitado de costas na grama, apoiado nos cotovelos, olhando tudo ao meu redor. A textura da grama sob minhas mãos, a umidade que ainda permanece nela, tudo isso me traz uma sensação de conexão com a terra que há muito tempo eu não experimentava, sempre tinha morado na cidade e em apartamentos…
Não muito longe, ouço risadas, misturadas com o barulho suave do vento que naquele dia era constante. A alegria das crianças da fazenda é contagiante, e por um momento, todas as preocupações parecem se dissipar. Olho para elas, brincando, correndo livres em volta de uma figueira centenária, com uma energia que só quem é pai sabe, inesgotável, mas ainda assim, em perfeita harmonia com a natureza ao nosso redor. Crianças, durante um bom tempo, apenas observam e absorvem o que o mundo apresenta, sem julgamento. Nossos problemas começam depois, quando nos vemos separados do todo, competindo por uma linha de chegada que não existe.
O sol de outono cobre tudo com uma luz meio dourada, minha preferida para fotografar, cria um jogo de sombras no chão entre as folhas das árvores. As sombras dançam com a brisa, criando padrões hipnotizantes como um caleidoscópio e capturam minha atenção.
Penso enquanto escrevo essa cena, em “Dias Perfeitos” , filme recente do Wim Wenders, onde o protagonista ama observar o komorebi, palavra japonesa que define a maneira como a luz e a sombra se filtram pelas folhas das árvores.
Uma brisa suave toca minha pele enquanto o sol me aquece gentilmente, sem exageros. Parecia que alguém havia preparado esse momento perfeito só para mim.
Na minha frente, um bosque com árvores enormes que parecem me observar silenciosamente, assim como o passar do tempo. Sem pressa. O “povo em pé” como os nativos norte americanos definem esses seres impressionantes. Seus troncos robustos e galhos que se estendem para o céu me fazem parecer pequeno, mas de alguma forma, parte de algo muito maior. Me sinto integrado a toda essa vida ao meu redor, como se a natureza e eu estivéssemos no mesmo ritmo, um ritmo completamente dissociado dos ponteiros do relógio - ainda uso analógico- e dos compromissos da vida.
As folhas das árvores se movimentam com o vento produzindo um som característico e que me relaxa enquanto um esquilo corre por um galho, parando por um momento, olha para mim com um certo ar de curiosidade e segue sua jornada. Tudo isso me lembra a simplicidade e beleza da vida que na maioria das vezes ignoramos por conta da nossa pressa diária, no já assimilado “corre”; palavra que me causa certo incômodo, especialmente por conta da minha decisão de me afastar dos grandes centros há alguns anos atrás…
Mas, por dentro, as coisas não estão tão calmas. Meu relacionamento com minha agora ex-mulher, que também está nessa viagem, não anda nada bem. Sinto-me dividido entre inúmeras dúvidas e uma crescente vontade de mudar, bem diferente da paz que vejo ao meu redor. É um contraste marcante - a serenidade externa e a turbulência interna. Questões não resolvidas entre nós, tão tangíveis quanto as nuvens que pairam logo ali em cima de mim. No céu azul e imenso, essas nuvens passam devagar, mudando de forma como se fossem atores trocando de figurino no palco. Enquanto olho para elas, tenho uma percepção profunda, algo que só mais tarde, muitos anos depois, vou entender como um dos momentos mais importantes da minha vida.
As nuvens se tornam uma metáfora viva dos pensamentos e emoções que passam por minha mente - efêmeros, em constante mudança, mas sempre contra o pano de fundo imutável daquele céu azul de outono.
Nesse instante, me sinto profundamente ligado a tudo ao meu redor. Não me vejo mais como alguém separado, mas como parte desse bosque - sou a árvore, o arbusto, a folha de grama e até mesmo o pica-pau que bate no tronco de uma árvore próxima. É uma sensação estranha e ao mesmo tempo familiar, como se eu estivesse me lembrando de algo que sempre soube, mas havia esquecido.
Essa sensação de união, mesmo que rápida, marca o começo da minha jornada para entender melhor a realidade. É meu primeiro passo para sair da ilusão de que estamos separados de tudo, mostrando como todas as coisas estão conectadas. É como se uma cortina tivesse sido leve e brevemente levantada e revelasse uma realidade mais profunda e interconectada algo que eu jamais havia imaginado, um vislumbre de algo muito significativo.
Nesse momento, sinto como se o universo inteiro estivesse respirando comigo, num único movimento do qual faço parte. Cada inspiração e expiração parece sincronizada com o movimento das folhas nas árvores, com o voo dos pássaros, com o fluxo do riacho que ouço de longe. É uma sensação de pertencimento tão profunda que quase me deixa sem fôlego.
Ainda que tenha sido breve, muito breve mesmo, uma fração de segundo, essa experiência continua iluminando meu caminho, me lembrando sempre da beleza de estar verdadeiramente presente e conectado. Nos anos que se seguiram, em momentos de angústia ou solidão, eu voltaria a essa memória como um farol, um lembrete da unidade fundamental que existe por trás de toda aparente separação.
Hoje em dia, quando falo sobre Consciência* em palestras, muitas delas inclusive para o mundo organizacional, da liderança e dos resultados, uso a imagem das nuvens e do céu para explicar a não dualidade. As nuvens que passam rápido e mudam de forma, se tornam um símbolo dos pensamentos que aparecem e desaparecem no céu vasto e definitivo da Consciência, que observa tudo calmamente, sem julgar. Essa metáfora, nascida daquele momento na fazenda, se torna uma ferramenta poderosa para ajudar outros a compreenderem essa verdade (?) profunda.
Conforme exploro mais essa ideia ao longo dos anos, começo a ver como ela se aplica a todos os aspectos da vida. Os altos e baixos das emoções, os sucessos e fracassos, as alegrias e tristezas - especialmente os fugazes e inconsistentes pensamentos - tudo isso são como nuvens passando pelo céu imutável da consciência. Essa compreensão traz uma paz profunda, um silêncio, a aceitação do fluxo da vida que antes me parecia impossível.
Agora, sentado aqui em 2025, escrevendo esse texto, percebo que aquela tarde de outono foi muito mais que uma simples fuga da rotina. Foi uma porta para um entendimento mais profundo, um vislumbre de uma verdade que continua moldando como vejo o mundo e a mim mesmo. Embora na época eu não pudesse imaginar, aquela experiência de unidade plantou uma semente que cresceria e daria frutos nos anos seguintes. Ela me levou a explorar práticas meditativas, a estudar filosofias orientais e ocidentais e a buscar constantemente uma compreensão mais profunda da natureza da realidade e da Consciência.
Essa busca não foi sempre fácil. Houve momentos de dúvida, períodos em que a ilusão da separação parecia mais real do que nunca (Isso ainda acontece, mas com menos frequência).
Meu relacionamento eventualmente chegou ao fim, trazendo sua própria dose de dor e questionamentos. Mas mesmo nos momentos mais difíceis, aquela memória da fazenda permanecia como um lembrete silencioso de uma verdade mais profunda.
Conforme aprofundei meus estudos e práticas ao longo dos anos, comecei a entender que aquele momento de clareza na fazenda não era algo para ser buscado ou recriado, mas sim um vislumbre da realidade que está sempre presente, esperando ser reconhecida. Aprendi que a prática não era sobre buscar e alcançar estados elevados de Consciência, mas sim remover os véus e camadas (geralmente ligadas ao ego e aos pensamentos constantes) que nos impedem de ver o que já está ali.
*Consciência com C maiúsculo mesmo, diferente de “estar consciente” - assim vou me referir ao termo quando estiver falando sobre presença consciente ou desperta.
Komorebi - o mover das árvores pode ser incessante, mas o sol que se projeta por entre as folhagens é calmo e quente. O vento sopra, enquanto respiramos. O nosso ritmo é compassado. A calma vem, e com ela clareza de pensamento, e percepção que há luz que se acende sobre o que incomoda e pede atenção. Tudo a seu tempo, a sua hora, a seu dia.