O futuro não mora aqui
Quando a tecnologia vira fé e a inovação ocupa o lugar do essencial
Existe um incômodo que me visita em certas viagens e eventos. Não é desconforto com o deslocamento em si —embora viajar tenha se tornado uma forma de tortura moderna — mas com o que encontro quando chego: eventos grandiosos, milhares de pessoas reunidas em torno do discurso da inovação, da tecnologia, do futuro. Ambientes impecavelmente desenhados para impressionar — painéis inspiradores, luzes, buzzwords e stands com as mais variadas “ativações”. E, no entanto, no meio da multidão, o que me atravessa é um silêncio estranho.
Algo em mim observa tudo aquilo com uma distância que não é julgamento — mas a sensação de incômodo por perceber o quanto seguimos distraídos.
Enquanto se vendem soluções, ideias, narrativas pessoais, noto o esforço coletivo de parecer relevante. Todos tentando se destacar, se fazer ouvir, se colocar à frente. E eu ali, me perguntando: que tipo de futuro estamos, de fato, construindo?
Tecnologia e inovação se tornaram nossos novos deuses.
A eles oferecemos o que temos de mais íntimo: tempo, atenção, decisões. Deixamos que moldem nossas rotinas, nossas relações, nossas formas de perceber o mundo, como se eles pudessem, por si só, nos conduzir a um lugar melhor — quando, na verdade, só amplificam a consciência (ou a ausência dela) de quem as opera.
Nesse tipo de ambiente, vejo muito movimento e pouca presença. Muita fala e pouca escuta. Muita conexão funcional, transacional e quase nenhum encontro real, relacional e autêntico.
A lógica é sempre a mesma: mensurar, escalar, performar. Até mesmo a empatia vira KPI. Até mesmo a pausa vira produto.
É curioso — e inquietante — como nos tornamos hábeis em organizar tudo, menos o essencial.
A ilusão de separação segue viva. Eu e o outro. A empresa e a sociedade. O sucesso e o sentido. A inteligência e a sabedoria. Mesmo as iniciativas mais bem-intencionadas ainda operam sob esse paradigma fragmentado, onde o que não se traduz em entrega (ô palavrinha) é descartado. E onde a interioridade segue sendo tratada como um luxo, e não como fundamento.
A não dualidade não é uma ideia mística — é realidade esquecida.
Não há “fora” que não seja reflexo do “dentro”.
Não há sistema que funcione se sua lógica estiver desconectada da vida.
E, no entanto, seguimos repetindo a fórmula — mais tecnologia, mais dados, mais aceleração, mais growth(!?!), — como se isso, em si, fosse cura.
E é isso que me angustia: perceber que, mesmo enquanto discutimos as soluções do futuro, seguimos operando com a lógica de escassez, de disputa, de separação — como se fosse possível consertar o mundo sem tocar naquilo que nos impede de vê-lo como um só corpo. Um tipo de progresso que ignora a escuta. Que prefere o algoritmo à dúvida. Que se fascina com a performance, mas se esquiva da presença.
Enquanto isso, o mundo grita.
Gaza. Ucrânia. O clima. A Amazônia. As periferias invisíveis.O aumento da fome. A polarização. O esgotamento mental travestido de produtividade. A radicalização de discursos autoritários, que se alimentam do medo e da pressa.
Tanta dor escancarada — e nós aqui, distraídos em debates animados sobre a próxima grande disrupção, como se o real problema fosse a falta de soluções. Sorrindo em painéis bem iluminados, discutindo métricas de engajamento como se isso fosse o que importa, como se o que estivéssemos vivendo fosse uma crise de tecnologia, e não de Consciência.
Nem toda viagem leva a algum lugar. Às vezes, o que chamamos de progresso é apenas um desvio do que realmente importa.
E o que importa, hoje, talvez não seja correr para construir o novo — mas parar para olhar o que estamos evitando. Perguntar de onde estamos criando. E a serviço de quem ou de quê.
Porque sem essa escuta — profunda, desconfortável, interior — continuaremos a criar mais do mesmo, apenas com nomes diferentes e interfaces mais bonitas, rápidas, funcionais.
Falta presença. Falta silêncio. Falta coragem para voltar, não no tempo, mas ao centro. Ao que sustenta, mesmo sem aparecer.
Talvez a inovação mais urgente seja essa: reaprender a perceber, relembrar o que sempre esteve aqui — e que nunca se separou de nós.
"Sim, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
Bem isso mestre. Compartilho dessa inquietação… é a caverna de Platão, a maioria continua escravo olhando para as sombras e alguns poderosos dominam o jogo da caverna. Se beneficiam dessa distração.
É intencional. Isso que é foda…