O iceberg invisível do flow
O que não se vê é mais transformador do que a produtividade que todos celebram.
A ponta do iceberg do estado de flow é justamente aquilo que todos já ouvimos: aumento de performance, desempenho desenfreado, ganho de tempo. O sonho de onze em cada dez empresas no mundo. Mas, por ser apenas a ponta e carregar esse apelo produtivista que o transforma em objeto de desejo, acabamos ignorando uma imensidão de outros benefícios que o flow pode oferecer.
Entre eles, a possibilidade de enxergar a si mesmo a partir de uma perspectiva mais ampla — a de um observador neutro que percebe que aquele que busca a performance está, na verdade, apenas tentando satisfazer o maior dos senhores: o ego. Uma construção mental.
Esse feitor que pensamos ser nós mesmos nos mantém em rédea curta, convencidos de que tudo o que pensamos tem origem em nós, logo deve ser verdade. Crescemos acreditando que vemos o mundo de um ponto de vista situado atrás dos olhos e entre as orelhas. Dali observamos, analisamos, julgamos, condenamos, quase sempre tentando antecipar cenários — geralmente os piores — para evitá-los. Herança de nossos ancestrais caçadores e coletores.
Se deslocarmos a atenção para outro ponto — a mão, por exemplo — e dali nos relacionarmos com o mundo, fica evidente que não estamos limitados ao aparato corpo-mente. Somos também o que nos envolve, o espaço que observa sem julgar nem resistir.
O flow acontece quando deixamos de nos perceber como separados da ação que conduzimos ou da qual participamos, dissolvendo-nos no que se manifesta.
O surfista é a onda e a prancha. O arqueiro é a flecha, o arco, o alvo e ele mesmo, um só. É Ayrton Senna descrevendo sua volta mágica em Mônaco, em 1988.
Estar em flow é viver o Wu Wei taoista - a ação sem esforço, o não forçar -algo possível apenas quando deixamos de nos atrapalhar com pensamentos ininterruptos, como macacos saltando de galho em galho, agarrando-se a um ou outro, quase sempre negativos. Ruminações, arrependimentos, mágoas, medos. Histórias que contamos a nós mesmos, ficções elaboradas e convincentes - afinal, sou eu que as penso, não? É aqui que está nosso maior problema, mas também a maior oportunidade: se não sou o que penso, o que sou?
Ao me perceber maior que os pensamentos, observando-me de fora, começo a entender que o que vejo e sinto dentro de mim também está fora. Ao me fundir com o todo, sou o todo e tudo o que ele contém. Os pensamentos deixam de interferir e passam a ser como o clima, que muda com as estações sem tocar o firmamento, sempre presente e intacto. Assim, tudo o que faço deixa de ser um esforço pessoal e passa a ser a vida acontecendo por mim, sem interferência, no exato ritmo que precisa — para o bem e para o mal.
Essa neutralidade, que para muitos é impensável, já que fomos condicionados a acreditar na vontade própria, é a grande oportunidade para viver em plenitude. Estar presente a cada momento, sem ser arrastado pela corrente contínua de pensamentos. O flow é o fluir, o deixar acontecer. Não se trata de acomodação niilista, mas do entendimento de que tudo ocorre no instante presente. Passado é memória. Futuro é imaginação. Neste instante, que já não existe mais, está tudo o que há. Aqui não há falta, dúvida ou sofrimento.
A dependência dos pensamentos nos empurra para uma vida de busca incessante - mais, melhor, mais confortável - uma linha de chegada que nunca chega. A promessa de felicidade sempre adiada para quando nos casarmos, tivermos filhos, nos aposentarmos, conseguirmos aquele emprego, viralizarmos aquele post, encontrarmos aquele amor.
O flow é lidar com o que acontece agora. Quando olho para o mundo das organizações, vejo com clareza os equívocos cotidianos da liderança, ainda presa ao comando e controle herdado da revolução industrial. Liderança não é um indivíduo, é uma ideia. Mas como acreditamos na separação, nos agarramos a cargos e posições como garantias de poder.
E, com isso, desperdiçamos a possibilidade de uma convivência com significado, onde resultados e metas sejam apenas consequências de algo maior — algo que só podemos experimentar quando deslocamos a atenção da mente e suas ilusões para o coração, onde o verdadeiro flow reside.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski