O lugar sem origem
Notas sobre uma presença que não cabe em palavras, uma experiência impossível de repetir e impossível de esquecer
Se eu fosse escrever de verdade sobre uma memória - uma que tenha deixado uma marca sem forma, mas persistente, não seria para construir uma narrativa de autoconhecimento nem para ensinar nada. Seria apenas para dar testemunho de um instante em que tudo o que sustentava minha ideia de realidade se desfez, não em caos ou colapso, mas num silêncio envolvente.
Não havia cena externa. Nada aconteceu aos olhos de fora. Mas por dentro, o que eu chamava de “eu” deixou de fazer sentido, se dissolveu de forma abrupta. A referência central desapareceu. Corpo, identidade, pensamento, tudo ficou suspenso, como se tivesse sido puxado o pano do fundo e o que ficou não foi o vazio, foi aquilo que sempre esteve ali, mas nunca tinha sido notado, às vezes, muito raramente, pressentido.
Durante um tempo, tentei repetir a experiência, quis voltar àquele lugar. Não tinha entendido que não há “voltar” para o que nunca foi embora. Quanto mais eu buscava, mais me afastava. A busca é a inquietude do ego. A presença quando percebida, não responde a esse comando.
Mais adiante, comecei a reconhecer um padrão. Aquilo não vinha como resposta, resultado, nem como prêmio. Aparecia quando a estrutura do “eu” falhava diante do medo, da exaustão, de uma situação limite, de uma entrega real. Não era expansão, era dissolvimento, e junto com ela, uma lucidez bruta, afiada, impessoal e precisa.
Não se trata de estar conectado ao todo porque não há separação. A ideia de um eu aqui e algo maior lá fora é só uma ideia, uma inferência. O que existe é um funcionamento contínuo do qual fazemos parte, mas que não começa em nós nem termina em nós. A vida não acontece “para” nós. A vida vive através de nós.
De alguma maneira, sabemos disso, reconhecemos isso imediatamente, quando as distrações cessam. Não é uma lembrança, não é um conceito, não é uma crença. É mais próximo do que nosso próprio corpo. Mais silencioso que o pensamento. Um fundo estável, imóvel, intacto, mesmo quando tudo em volta se move. Imagine o fundo do mar, que não se abala com a correnteza na superfície. Ou a pedra no meio do rio, imóvel, mesmo quando toda a força da água passa sobre ela. É por aí.
Essa presença não precisa ser cultivada e nem precisa ser explicada. Ela já é. O que a encobre não é a ignorância, mas o barulho constante da identidade, do “eu” que pensamos ser, tentando se afirmar o tempo todo. Não somos separados do todo, mas também não somos conectados. Somos expressões temporárias de algo que não tem forma nem tempo. O que muda é a atenção. Quando ela se desloca do personagem para aquilo que sustenta tudo, o reconhecimento acontece de forma rápida, crua e inquestionável.
É bastante comum confundir isso com estados alterados ou experiências “místicas”. Muita gente busca atalhos, gurus, substâncias, práticas, técnicas. Algumas ferramentas abrem espaço, outras distorcem. Drogas recreativas aumentam o ruído dando a falsa sensação da ampliação da Consciência. Não é. É alteração. Medicinas da terra e plantas de poder, podem abrir brechas, mas o que realmente rompe a estrutura não é a substância, é o colapso do controle. É quando o eu perde as rédeas e algo mais fundo assume, não como agente, mas como base de tudo.
A Consciência não é um estado a ser buscado ou atingido. A Consciência, com C maiúsculo, é tudo. Abraça tudo. Inclusive a sensação que você sente ao ler estas palavras. De algum lugar, de onde em tese, reside sua atenção.
A palavra "consciente" também pode se referir ao simples fato de estar desperto, atento. Mas não falo aqui desse estado. Falo de uma Presença que se percebe no entorno. Que se escuta, que se sente na pele, por fora e por dentro. Um lugar que não está acomodado atrás dos olhos ou entre as orelhas, como imaginamos ao pensar e dirigir nossas vidas. A Consciência já É.
A Consciência não é uma experiência especial. É o que torna todas as experiências possíveis. É o que permanece quando o esforço cessa e quando o “eu” que quer entender, sentir, evoluir, desaparece. O que sobra não é vazio. É o que sempre esteve aqui: imóvel, silencioso, sem nome. O fundo do mar, a rocha no rio. O ponto é simples, mas incômodo: enquanto o “eu” estiver no comando, tentando entender, controlar ou conduzir, esse outro lugar permanece inacessível. Mas não é porque está longe, mas sim porque o movimento de buscar já é um obstáculo.
Estar presente, por inteiro, sem defesa, sem narrativa, sem expectativa, talvez seja o único gesto real. E talvez nem seja um gesto, seja só uma retirada do excesso, um esvaziamento do esforço. Um corte no fluxo do eu.
Quando o “você” deixa de ocupar o centro, o que emerge não é uma visão grandiosa. É o óbvio que sempre esteve aqui, mas que o ego não permite ver.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
Gracias. Un día luego de una larga jornada de esfuerzos, el agotamiento de la búsqueda llegó y la atención por obra de la gracia giró hacia la profundidad. Ese día, hizo toda la diferencia. Gracias CADU.
Cadu, não sei se você já leu A Paixão Segundo G.H., da Clarice Lispector. É um livro inteiro descrevendo esse momento (na minha interpretação, claro, rs). Bonita demais essa edição 🌷