O mito da memória
Sobre a ilusão confortável da lembrança e a angústia libertadora de não precisar mais dela.
Foi-se o tempo
Você já percebeu como tratamos a memória com reverência? Como se ela fosse um arquivo confiável, uma espécie de testemunha interna, honesta, silenciosa, à qual recorremos quando queremos nos lembrar de quem somos, do que vivemos, das supostas lições que aprendemos. Só que não é nada disso. A memória não registra, ela recria. Não guarda, reconstrói. E reconstrói mal.
Mais de 80% do que chamamos de memória é fabricado no momento da lembrança. É isso que mostram décadas de estudos em neurociência cognitiva. O hipocampo, junto com o córtex pré-frontal, trabalha não como uma câmera de segurança, mas como um roteirista instável, que reescreve o passado com base no agora, nos afetos atuais, nas inseguranças presentes, nos desejos mais urgentes. O que você lembra não é o que aconteceu. É o que hoje você precisa que tenha acontecido.
Acha que exagero? Lembre-se de uma discussão antiga. Um conflito marcante. Releia aquela troca de mensagens. Reveja a cena que você jurava ter compreendido perfeitamente. A cor da parede muda. A fala do outro muda. A sua própria reação não bate, trazendo um incômodo: como posso confiar em algo que muda toda vez que eu me lembro?
A resposta curta é: não pode.
Mas, seguimos tratando a memória como um lastro, como se ela garantisse a nossa consistência. Repetimos histórias como quem precisa reafirmar sua identidade. A primeira entrevista, o primeiro fracasso, a viagem transformadora, a demissão que "acordou", o trauma que “ensinou”. Mas tudo isso é só um verniz que aplicamos sobre o vazio. Uma tentativa tola de dar espessura ao que nunca teve forma definida. E pior, a cada vez que lembramos de algo assim, nosso cérebro não distingue que aquilo não está acontecendo neste momento. Mas o corpo reage como se estivesse. Uma memória negativa traz todo o impacto ruim da descarga de adrenalina e cortisol, como se tudo estivesse sendo vivido pela primeira vez.
Memórias não servem para nada além de alimentar esse personagem que acreditamos ser. Não estou dizendo que não aconteceu. Mas aconteceu como e para quem exatamente? Na maioria das vezes, são apenas fragmentos desconectados que usamos como uma cola fraca para manter em pé uma ideia de “eu” que já não se sustenta faz tempo.
Mesmo quando a lembrança parece positiva, aquele momento de conquista, um êxtase, uma celebração que ainda aquece o peito, basta um olhar um pouco mais diretamente para perceber que o que sentimos hoje ao lembrar não é o mesmo que foi sentido naquela hora. O corpo de agora sente o que pode sentir com os dados disponíveis no agora. Não há nenhum túnel do tempo. O que existe é evocação e a evocação não tem precisão.
E tem mais: se uma dessas memórias inspira alguma ação, se te dá um alívio, um norte, uma promessa de ajuste ou superação, cuidado. A ilusão está exatamente aí. Porque a memória também produz esperança. E esperança é só a antecipação de algo que nunca vai chegar, porque se chegasse, já não seria esperança, seria presença.
É duro admitir, mas quase tudo o que nos move é ruído. Um resíduo emocional disfarçado de sabedoria. Estamos cronicamente distraídos, ocupados em manter uma narrativa que funcione, nem que seja provisória. E por isso, perdemos o único ponto onde alguma lucidez pode emergir: o agora. Esse instante que não dá pra prender nem explicar. Só viver.
Se você me disser que a memória tem função adaptativa, eu concordo, tem mesmo. É útil lembrar onde dói, onde não pisar, onde tem comida, onde se esconde o perigo. Mas também é útil saber que esse mesmo sistema, do ponto de vista evolutivo, não está nem aí para a verdade. Ele quer sobrevivência, não clareza - e na maioria das vezes, a memória que protege é a mesma que sabota.
Então por que somos tão fiéis a ela? Porque sem ela, não sabemos o que sobra. Sem memória, a ideia de continuidade desaparece e sem continuidade, quem é você? Não tem currículo. Não tem trauma. Não tem história pra contar. Só tem isso aqui: o silêncio que assusta porque não oferece controle.
Entretanto, esse pode ser o único lugar de real liberdade. Quando vemos com clareza que não precisamos sustentar nada, nem passado, nem futuro, nem opinião sobre nós mesmos. Quando percebemos que a maior parte da nossa tensão vem de tentar manter coerência com algo que já não existe.
Não estou dizendo para esquecer tudo porque seria só mais uma tentativa de controle. Estou dizendo para não seguir dando importância exagerada a coisas que se desfazem sozinhas. Memórias são como neblina. Se você olha fixamente, elas se desfazem. Assim como os pensamentos.
O que chamamos de “vida” não passa de uma sucessão de instantes interpretados por um narrador interno compulsivo e mal informado. A única coisa honesta a fazer talvez seja silenciar esse narrador, mesmo que por alguns segundos. O tempo suficiente para perceber que, sem ele, ainda há algo vivo aí. Algo que não precisa de nome, função ou sentido. Algo que simplesmente É.
Pensou em usar essa ideia como insight para um novo capítulo da sua biografia?
Acho melhor deixar pra lá.
Já foi.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski