O Rio
Quem ou o que vive a experiência da consciência? Nós somos a experiência, parte integral de todo o processo - não há sujeito nem objeto separados. Ensaio "Fronteira Interior".
É como se estivéssemos observando um rio à partir da margem. Assim imaginamos a vida fluindo por nós com todos os seus acontecimentos, pessoas, objetos e consequências. Nos mantemos separados por uma noção equivocada de que somos o sujeito e tudo o que nos circunda são meros objetos (tem gente que inclui nisso também pessoas ).
Esta margem representa nossa identificação com o ego, uma posição aparentemente segura e controlada. Dali, damos nomes e julgamos o que vemos: "isto é bom", "aquilo é ruim", "isso me agrada", "aquilo me perturba". Criamos uma falsa sensação de controle, como se pudéssemos gerenciar o fluxo do rio a partir da sua beira.
Mas o rio não é algo separado de nós. As águas que fluem são nossa própria consciência, carregando todos os fenômenos da existência. Os pensamentos são como folhas flutuantes, as emoções são as ondulações na superfície, as experiências são os diferentes volumes e velocidades da corrente.
Quando há o insight fundamental, percebemos que nunca estivemos realmente na margem. Somos o próprio rio, a caminho do mar - a água, o movimento, as correntes profundas e a superfície cintilante, na forma de um redemoinho, que dura o tempo que dura e depois se dissolve. Não há um observador separado do observado. O que chamamos de "eu" é simplesmente o fluir consciente de todas as experiências.
A margem é apenas um conceito mental, uma ilusão de separação. Quando "mergulhamos" de volta ao rio, reconhecemos nossa verdadeira natureza: somos o próprio fluir da consciência. Não há alguém experimentando - há apenas a experiência acontecendo em si mesma, como o rio que simplesmente flui sem necessidade de um fluidor.
Esta metáfora também nos mostra por que é tão difícil manter esta compreensão: nosso condicionamento nos puxa constantemente de volta à ilusão da margem, à falsa segurança da separação. Mas uma vez que reconhecemos a nossa verdadeira natureza como o rio, mesmo que às vezes, voltemos momentaneamente à margem, sabemos que ela é apenas uma perspectiva limitada de quem somos verdadeiramente.
O rio não tem início nem fim, não tem dentro nem fora - assim como a consciência que somos. Tudo que surge - pensamentos, sensações, emoções, percepções - são apenas diferentes expressões do mesmo fluir contínuo e indivisível da existência.
Quando compreendo que o rio sou eu, com tudo o que me acontece, percebo que não sou apenas observador - sou parte inseparável da experiência. Sou A experiência em si.
Imagine um rio majestoso, com suas águas em constante movimento. A maioria de nós vive como se estivesse na margem, observando a corrente passar. Desta posição, nos vemos como espectadores separados do fluxo da vida - as experiências, pensamentos, emoções e sensações parecem eventos externos que testemunhamos e por vezes interagimos, de forma positiva ou não.
Meu primeiro vislumbre desta realidade (talvez o segundo) trouxe uma sensação avassaladora: meu corpo físico se dissolvia enquanto a percepção se expandia infinitamente num vasto espaço branco. Num instante, senti meu ponto de vista se deslocar da percepção desse fenômeno para observá-lo a partir dele mesmo, até finalmente percebesse uma fusão em uma espécie unidade absoluta. Uma coisa só. Com o tempo, tem sido mais natural retornar a esse estado, quando me desprendo do ponto de vista limitado da mente e do ego para fluir nesse olhar abrangente que tudo engloba. As experiências sensoriais - ver, ouvir, cheirar, degustar, tocar - convergem numa única percepção integrada, assim como um deslocamento da mente racional para algo mais sensorial, intuitivo. Palavras limitam a descrição deste conceito, mas de certa forma, o estado de flow quando vivenciado, é exatamente isso.
A gravidade da mente ordinária nos puxa constantemente de volta, mas quando reconheço isso, deixo a margem e mergulho novamente no rio da consciência, onde não existe um "quem" separado que experimenta as sensações. O que existe é apenas o próprio experienciar: o olhar, ouvir, cheirar, degustar e tocar acontecendo simultaneamente, como na música dos Titãs - "tudo ao mesmo tempo agora".
Uma profunda sensação de familiaridade emerge quando o ponto de vista se desloca para o olhar da Consciência desperta. A primeira vez foi extraordinária - senti nitidamente uma emoção de "volta para casa", um alívio muito difícil de explicar e que permanecia mesmo (e especialmente) diante de situações desafiadoras ou ameaçadoras, fossem físicas ou sociais. Era um relance, fugaz, mas eu sentia que estava lá.
Este relato expressa visceralmente minha experiência desde o vislumbre do que entendo ser nossa real identidade. O impacto inicial da simplicidade e obviedade desse “entendimento” me fez compreender por que os maiores segredos se escondem à plena vista.
Talvez por isso mesmo essa realidade fundamental seja tão negligenciada - por sua própria simplicidade. O “supermercado” espiritual prospera cheio de vendedores e compradores, negociando incessantemente em busca de algo externo a si mesmos. Algo que, ironicamente, não possui caminho, truque nem receita para ser conquistado, porque sempre foi gratuito e acessível. Sempre esteve aqui.
Esta mesma acessibilidade, ironicamente, faz com que esse “algo” seja desconsiderado e até mesmo desprezado por alguns de nós (embora não exista verdadeiramente o "outro", mas a linguagem dual é inevitável) entorpecidos por nossas programações e condicionamentos individuais, oriundos de nossa formação ao longo do tempo, com o ego sempre ávido por provar uma superioridade ilusória, que tem nome: Materialismo espiritual.