Nesses meus dias intercalados de contemplação e trabalho - começo de ano acaba levando um ‘tempo’ para pegar no tranco - me vi pensando no que significam alguns momentos de puro ócio, ou ao contrário, de puro flow. Já fui mais culpado com relação a isso, hoje percebo que essa é apenas uma forma (mais uma delas) de condicionamento para seguir jogando o jogo de cena que chamamos de ‘sociedade’.
O tempo, essa construção fascinante que tentamos compreender desde que nossos primeiros ancestrais apareceram, manifesta-se de formas diferentes em diversas culturas. Os gregos antigos distinguiam entre chronos - o tempo linear, mensurável - e kairos - o momento oportuno, o tempo qualitativo da oportunidade divina. Nos países asiáticos, como China e Japão, onde a escrita tradicional flui em colunas verticais da direita para a esquerda, o tempo é naturalmente visualizado nessa direção.
No ocidente, seguindo o padrão greco-romano que influenciou a escrita latina, o fluxo temporal é concebido da esquerda para a direita. Esta diferença não é apenas estética - ela reflete profundamente como cada cultura processa e registra sua história, seus calendários e sua literatura.
Curiosamente, algumas pessoas, incluindo eu, visualizam mentalmente o tempo fluindo da direita para a esquerda, mesmo vivendo em culturas onde a convenção é oposta. Este fenômeno, estudado por psicólogos cognitivos, sugere que nossa percepção temporal pode ter raízes mais profundas que nossa educação cultural. Seriam estes resquícios de outras experiências, de outros tempos e lugares que habitam meu inconsciente? Carl Jung, com sua teoria do inconsciente coletivo, sugere que sim.
A verdade é que o tempo é profundamente subjetivo. Einstein revolucionou a física ao demonstrar matematicamente que o tempo não é absoluto, mas relativo ao observador. Quando nos referimos ao passado ou imaginamos o futuro, o fazemos sempre no presente. O passado existe apenas como memória - neurônios disparando em padrões específicos em nossos cérebros - e o futuro como possibilidade imaginada, projeções neurais baseadas em experiências passadas. Ambos aliás, meras fantasias, já que se sabe que mesmo as memórias não são confiáveis. O que temos de fato é uma sucessão de "agoras", micro-momentos, que se entrelaçam formando o que chamamos de experiência. Esses micro-momentos foram pesquisados no que é conhecido como o “Tempo de Planck (aqui)”
Esta experiência se desenrola dentro de uma Consciência única e absoluta, um conceito presente em diversas tradições filosóficas antigas. No Advaita Vedanta, uma das seis escolas clássicas da filosofia indiana que data de aproximadamente 788-820 d.C., esta ideia é central. Somos todos, segundo esta perspectiva, manifestações desta mesma Consciência, participando de um sonho coletivo.
Nossos corpos e mentes são como "trajes espaciais" temporários, instrumentos através dos quais a Consciência observa a si mesma, criando experiências para desfrutar da materialidade terrena.
Seguindo esta linha de pensamento, o nascimento e a morte são apenas transformações do "traje espacial", não da essência consciente que somos. Na tradição hindu, este conceito se expressa através de Atman (o self individual) que eventualmente se funde com Brahman (a consciência universal) para continuar o sonho cósmico. Este conceito encontra paralelos interessantes na física quântica moderna, especialmente na teoria da não-localidade (da Consciência) e no emaranhamento quântico, onde partículas separadas por grandes distâncias mantêm uma conexão instantânea inexplicável pelos padrões da física clássica.
Muitas tradições espirituais, desde o budismo tibetano com seus ensinamentos sobre Bardo (estados intermediários de consciência) até os místicos sufis, utilizam a metáfora do sonho dentro do sonho. O filósofo chinês Zhuangzi (369-286 a.C.) já questionava se ele era um homem sonhando ser uma borboleta ou uma borboleta sonhando ser um homem. Quando sonhamos à noite e nos lembramos do sonho ao despertar, percebemos que aquela experiência, embora etérea e fugaz, parecia tão real quanto nossa realidade cotidiana.
A filosofia não-dual, presente tanto no Oriente quanto em pensadores ocidentais como Plotino (204-270 d.C.) - que baseava-se na ideia de que há um "Um" único, indivisível e transcendente que é anterior a toda existência - e nos modernos como Francis Lucille, Rupert Spira, Stephen Bodian ou os falecidos Alan Watts, Douglas Harding, Jean Klein, Peter Brown, entre outros, vai além, sugerindo que nossa realidade "desperta" é também um sonho - o sonho da Consciência universal.
Assim como num sonho noturno onde tudo parece real até despertar, vivemos num sonho maior, mais elaborado, mais denso. A única diferença é que deste sonho maior ainda não despertamos completamente. Os neurocientistas modernos descobriram que os padrões cerebrais durante o sonho REM são notavelmente similares aos padrões da vigília, dando algum “suporte” científico a esta antiga metáfora. Seguimos sonhando o sonho da Consciência, experimentando a materialidade através destes corpos temporários, neste palco universal que chamamos de Terra.
Estas perspectivas sempre me intrigaram e de uns tempos para cá venho me perguntando: seria nossa percepção do tempo só mais uma camada deste sonho cósmico? Uma construção necessária para que possamos tátil e físicamente viver uma experiência material, mas não necessariamente uma verdade absoluta?
Enquanto chronos representa o tempo quantitativo que medimos com relógios e calendários, kairos simbolizaria aqueles momentos significativos que parecem ir muito além da nossa noção comum de tempo - os instantes de insight, as experiências místicas, os momentos de profunda realização espiritual, a conexão com a Consciência, com a Presença.
São justamente estes momentos “kairológicos” que tornam possível um vislumbre da natureza mais profunda da realidade, sugerindo que a nossa compreensão convencional do tempo e da nossa própria identidade, pode ser apenas a ponta de um iceberg muito mais profundo e misterioso.
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