
Estamos procurando os óculos que já estão no rosto.
Olhe para um mapa-múndi invertido. O que você sente? Estranhamento? Desconforto? Uma vontade imediata de corrigir o que parece diferente, de girá-lo de volta “ao normal”?
A reação mais comum é pensar: “está errado, o mundo não é assim”.
Mas quem disse que o Norte precisa estar em cima? Quem decretou que a Europa merecia o centro?
Essas imagens do mundo não são verdades geográficas — são narrativas, meras convenções. Acertos silenciosos que herdamos de quem veio antes, sem nunca termos sido convidados a questioná-los. Aceitamos esses mapas como aceitamos quase tudo na vida: sem perceber que estamos aceitando.
O mapa invertido nos desorienta não porque esteja incorreto, mas porque expõe nossa dependência de uma visão pré-formatada da realidade. Uma visão que não criamos, mas seguimos.
E não é só com mapas. É com tudo.
É assim que começamos a vida: sendo ensinados o que é certo, o que é belo, o que é “real”.
Aprendemos que somos um indivíduo separado, um “eu” isolado, com um nome, uma história, uma missão — como se fôssemos ilhas num mar de outras consciências.
Aceitamos esse eu como aceitamos o Norte no topo do mapa: sem notar que poderíamos olhar de outro jeito.
Essas decisões não nasceram da verdade absoluta. São convenções — construções culturais — que aceitamos sem questionar. Herdamos esses mapas como herdamos tantos outros: mapas emocionais, espirituais, sociais. E seguimos vivendo dentro de suas fronteiras invisíveis, como se fossem a única forma possível de ver e ser.
Venho nestes ensaios, trabalhando com algumas repetições dos mesmos conceitos, buscando apontar alguns “nortes” com relação à Não Dualidade.
Da mesma maneira, por séculos, transformamos a simplicidade essencial da vida num verdadeiro labirinto espiritual.
Erguemos montanhas de livros sagrados, criamos linhagens complexas de mestres, desenhamos práticas esotéricas e exigentes — tudo em busca de algo que, paradoxalmente, nunca esteve ausente. Nunca esteve separado de nós. Acreditamos que a verdade é um prêmio escondido atrás de véus místicos e que exige anos de purificação.
Mas a não-dualidade não está no fim de uma jornada. Ela não é um estado raro reservado a monges ou mestres iluminados.
Ela é o que permanece quando abandonamos a história da separação — essa narrativa sutil e persistente de que somos um “eu” navegando num mundo “lá fora”.
Experimente parar agora.
Respire.
Olhe.
Não para onde apontam as tradições, os gurus, os mapas sagrados — mas para o que olha.
Para aquilo que percebe. Para o campo silencioso onde tudo aparece, inclusive os pensamentos, inclusive o “você” que pensa estar olhando.
O mapa invertido nos convida a rever o mundo com novos olhos. Também podemos inverter a direção do olhar e nos perguntar se essa identidade tão familiar — este “eu” com nome, CPF, profissão e memórias — é de fato o centro da experiência?
Ou ele é só mais um ponto no mapa? Um marcador entre tantos, tentando se localizar sem perceber que já está em casa?
Não precisa de incenso, não precisa de mantras e nem de posturas difíceis.
Não é preciso abandonar nada, nem fugir para longe, ir para o Ashram na India que sua professora de ioga frequenta.
A única coisa realmente necessária é a disposição de questionar o que parece absolutamente óbvio.
É quase cômico quando percebemos, tão engraçado quanta a cena daquele alguém que passa a vida procurando os óculos que já estão no rosto.
Ou as chaves que carrega o tempo todo. É tão óbvio e simples, quase pueril e por conta disso, desconsiderado pela maioria dos “buscadores”. Nada de luzes e trombetas.
A paz, a liberdade e a plenitude não estão escondidas.
Elas só parecem ausentes porque foram cobertas — não por obstáculos reais, mas por camadas de crença, hábito e linguagem.
A própria ideia de que você é uma entidade separada é um mapa — útil, em certos contextos. Mas jamais território.
Assim como o mapa-múndi invertido nos obriga a revisar nossas certezas sobre o mundo, a investigação direta da consciência revela que a separação é só uma construção, um hábito mental, uma narrativa útil para a sociedade, mas que é ilusória na essência.
Olhe novamente.
Te convido agora: olhe novamente para si mesmo.
Mas olhe antes das histórias.
Antes das crenças.
Antes das ideias que te ensinaram sobre quem você “é”.
Quem é você antes de todos os “eus” ? A resposta nunca esteve escondida mas estava camuflada — não por véus místicos ou enigmas existenciais, mas sim pelo mais simples dos disfarces: o óbvio. Na nossa cara.
Quem seria você se tivesse nascido no hemisfério oposto?
Com outra língua, outra mitologia, outra estrutura de pensamento?
Será que o “você” que você tanto defende é realmente você, ou apenas o produto de um mapa que outros desenharam?
Não há caminho para casa.
Porque você nunca saiu dela.
Só se distraiu com o mapa.

"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski