Tudo é parte; Tudo se dissolve
Um guia para abandonar as histórias da mente e viver o momento.
Quase sempre que paro para observar meus pensamentos, vejo o mesmo truque: a velha mania de criar cenários onde tudo parece ameaçador, como se eu fosse uma peça solta num universo hostil.
Surge um problema, um estresse qualquer, uma lembrança incômoda, e logo a mente dispara:
E se? E se eu não fechar aquela venda? E se faltar o dinheiro do aluguel? E se o plano de saúde não cobrir aquele exame?
Essas perguntas parecem inofensivas, mas são a engrenagem de uma história maior, onde sou uma ilha frágil tentando sobreviver ao imprevisível.
Esse medo de fundo, que aparece tanto nas pequenas preocupações quanto naquelas questões existenciais, só faz sentido dentro da ilusão de separação. É como se eu fosse um “eu” isolado, vulnerável diante de forças externas, acreditando que a vida está sempre prestes a me dar um susto. Assim que compro essa narrativa, começo a desenhar as consequências, projetar futuros sombrios, e o presente escapa, quase invisível. Mas esqueço que se nada disso estiver realmente acontecendo, a ameaça passa a ser só um reflexo da crença de que sou separado, de que existe um “eu” que precisa se defender de um “mundo” lá fora.
Aceitar o presente não é um truque de autoajuda, nem um esforço de resignação, mas o reconhecimento direto de que não existe essa distância, não há ninguém aqui dentro tentando controlar algo lá fora. O que surge de forma mais frequente, preocupação, ansiedade, medo, faz parte do mesmo campo de Consciência onde tudo aparece. Quando vejo isso, a aceitação não é uma ação, é só o que já está acontecendo. Não sobra um “aceitador” tentando se acalmar, só a vida sendo exatamente o que é, sem as divisões criadas pelo pensamento.
Na prática, a aceitação do presente é tão simples, que a mente parece até desconfiar. Você sente uma dor de cabeça, ou um incômodo qualquer. Em vez de brigar ou dramatizar, basta perceber: “Está doendo.” Não precisa transformar isso numa tragédia, nem correr para consertar. Só sentir, perceber o corpo, observar o que está aqui, sem inventar uma história sobre o futuro. Tudo faz parte, tudo se dissolve.
O trânsito trava. O impulso é reclamar, culpar os outros, discutir mentalmente contra a situação. Aceitação é perceber: o carro está parado, o corpo respira, a mente protesta. Tudo isso aparece e desaparece sozinho. Não precisa inventar uma guerra. Dá até pra rir: preso no trânsito, livre por dentro. E no meu caso, com uma boa trilha sonora do Miles Davis.
Em uma discussão, alguém discorda de você, talvez até te ataque. O velho roteiro (meu velho conhecido), seria reagir, se defender, atacar de volta. Mas existe a opção de só sentir calor, raiva, frustração. Não precisa embarcar em tudo isso. O conflito está acontecendo, emoções surgem, pensamentos disparam. Só que tudo isso pode, se houver disciplina, ser visto, sentido, mas não definindo quem você é. Não existe um “eu” separado lutando por sobrevivência.
Quando um projeto dá errado, um plano fracassa, ou alguém vai embora, a primeira reação é se agarrar ao lamento: “isso não podia ter acontecido.” Aceitar o presente é reconhecer: dói, sim. Existe tristeza, frustração. Ninguém precisa afastar nada disso, ao contrário, é preciso viver a dor e não sublima-la. Sentir tudo, sem censura, sem querer buscar culpados. Mesmo na dor, existe um pano de fundo de paz, uma estranha liberdade que não depende do que acontece.
A mente adora criar histórias sobre o que pode dar errado. Em vez de mergulhar nelas, só perceba: pensamentos de medo estão passando. Eles não são previsões, nem verdades. São só pensamentos. O medo é só um movimento natural da mente, igual ao vento batendo na janela, você sente, mas não sai correndo atrás dele.
O tédio aparece, talvez numa fila, talvez num silêncio desconfortável. O impulso é fugir, preencher o vazio, pegar o celular. Aceitar o presente é experimentar o tédio, o desconforto, sem buscar distração. Observe: Aí que tédio aqui... Isso também passa, isso também é parte do que você é.
Quando uma coisa boa acontece, também se nota a tendência de segurar, de querer que ela dure. Aceitar o presente é saborear a alegria, o riso, o prazer, sem exigir permanência, sem transformar isso em identidade. Só apreciar, sabendo que tudo está fluindo, tudo está em movimento.
No fundo, lidar com essas preocupações acaba diminuindo o senso de urgência. Quando percebo a ansiedade chegando, costumo escrever o que estou sentindo, não para resolver ou me convencer de nada, mas só tirar o peso da cabeça. Às vezes, ao reler, vejo como era exagerado. Outras vezes, só de colocar no papel, a sensação já diminui. Se não diminui, tudo bem, não preciso brigar com meus próprios pensamentos. Eles vêm e vão, como nuvens, mas não dizem nada sobre quem eu sou de verdade. Se não fecho aquela venda, fecho outra. Se não der para morar aqui, moro em outro lugar.
A vida sempre segue, indiferente ao roteiro dramático que nossas mentes insistem em produzir.
O curioso é notar que o hábito de se preocupar, de ruminar cenários catastróficos, é só um reflexo dessa ilusão de separação. Uma tentativa desajeitada de proteger algo que nunca esteve realmente em risco. São ruídos antigos, ecos de histórias herdadas, de nossos condicionamentos e crenças, invenções de um cérebro e de um ego que adoram se ocupar ou se pré-ocupar.
Quando paro de alimentar essa ilusão, surge uma liberdade quase irônica. Não preciso de garantias, nem de controle absoluto (spoiler: Controle não existe). Tudo está incluído, até mesmo a tentativa de escapar, a dúvida, a resistência.
No fim das contas, confiar nas previsões da minha mente é como olhar o horário de um relógio sem ponteiro. O presente não pede permissão para existir. Ele só é, e, no fundo, é tudo o que nós somos, antes de qualquer história, conceito ou separação.
O resto é só ruído de fundo, esperando ser ignorado.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski