2 SEGUNDOS
A diferença entre reagir ou escolher uma atitude. Ensaio da Fronteira Interior.
Comecei a meditar ainda na adolescência, motivado por uma curiosidade latente que parecia sempre me empurrar para além dos limites do que era familiar. Meu primeiro contato foi com o método Silva de "controle mental", uma prática que fez grande sucesso nos anos 70. O curioso é que cheguei até ele por um acaso: a mãe de um amigo, fascinada pelo assunto, decidiu nos levar. Ele, no entanto, não demonstrava nenhum interesse, enquanto eu, tomado por um deslumbramento inesperado, senti que havia descoberto um universo inteiro a ser explorado.
Aos 15 anos, esse primeiro contato revelou algo que me marcou profundamente: a incrível capacidade que temos de processar informações e transformar nossos comportamentos. O fato de que nossa mente pode ser treinada, refinada e direcionada me abriu um horizonte de possibilidades. Desde então, embarquei em uma busca incessante, percorrendo múltiplas tradições espirituais e filosóficas, cada uma oferecendo uma perspectiva única sobre a consciência e a existência. Do Zen ao Xamanismo e Huna Havaiana ao Quarto Caminho de Gurdjieff1, e, finalmente, à compreensão vivenciada da Não Dualidade, segui como um explorador que, ao invés de terras desconhecidas, buscava decifrar a paisagem interna da própria mente.
Minha prática, confesso, não foi contínua. Como alguém que experimenta diferentes trajes em busca do ajuste perfeito, transitei entre métodos e tradições, abandonei alguns, voltei a outros, sempre impulsionado pela mesma questão fundamental: qual o sentido de tudo isso? Hoje, sem estar ligado a nenhuma delas, vejo que essa busca teve dois méritos essenciais:
O primeiro foi me preparar para uma revelação transformadora – o vislumbre claro da unidade fundamental de todas as coisas. Como um redemoinho no vento, que por um tempo se julga independente, até perceber que sempre foi apenas o próprio ar em movimento.
Foi um despertar sutil e profundo ao mesmo tempo. Durante anos, acreditei ser uma entidade isolada, separada do mundo e das pessoas ao meu redor. Até que percebi que essa separação era apenas uma construção mental, uma linha desenhada na água que se dissolve no instante seguinte.
A Não Dualidade não é um conceito que pode ser compreendido apenas intelectualmente; é algo a ser experienciado diretamente. Ler sobre o sabor de uma manga nunca será o mesmo que mordê-la e sentir seu sabor e se lambuzar com aquele sumo. Da mesma forma, a Consciência una que permeia tudo precisa ser vivida, não apenas concebida.
Imagine uma nuvem que teme se dissipar, preocupada com sua forma e tamanho, tentando manter-se no céu. Até perceber que sempre foi apenas água em diferentes estados, pertencendo ao ciclo infinito da natureza. Assim somos nós, manifestações momentâneas da consciência universal.
Mas existe um segundo mérito nessa jornada, um aspecto que me transformou em um nível prático e imediato- os dois segundos:
Sempre fui explosivo, impaciente com a autoridade, facilmente irritável com a grosseria e a falta de respeito. E ironicamente, essas eram as mesmas armas que eu usava para me defender. Era como se eu estivesse em guerra constante com os reflexos do espelho, golpeando a imagem que eu via sem perceber que estava ferindo a mim mesmo. Durante anos, reagi instintivamente a qualquer provocação, como um cão que late furiosamente para seu próprio reflexo, sem perceber que não há um inimigo real ali.
Então, algo mudou. Não de uma hora para outra, mas de maneira progressiva e quase imperceptível. Foi como se, ao longo das décadas de prática, eu tivesse conquistado um presente inestimável: dois segundos. Apenas dois segundos antes de reagir. Um instante de pausa que me permite respirar, me reposicionar e escolher conscientemente como responder a uma situação, ao invés de ser arrastado pela correnteza das emoções automáticas.
Esses dois segundos são como o espaço entre as notas musicais, sem os quais não há melodia, apenas ruído. São como o silêncio entre as palavras que dá sentido a uma conversa. Como a pausa entre a inspiração e a expiração – um espaço onde habita a própria essência da vida. Neles, encontrei a liberdade de ser mais do que um conjunto de reações condicionadas. Comecei a perceber o quanto cada escolha feita nesse pequeno intervalo tem o potencial de mudar completamente o rumo de uma interação, de um dia, de uma vida.
Lembro muito de uma situação específica: preso no trânsito caótico de São Paulo, cidade onde morei por mais de 30 anos, um motorista cortou minha frente de maneira brusca. No passado, minha reação teria sido imediata e previsível – buzina, gestos impacientes, e certamente um grito indignado me referindo a senhora mãe do circunstante. Mas, naquele dia, os dois segundos vieram. Nesse curto intervalo, pude ver além da irritação. Talvez aquele motorista estivesse em uma emergência. Talvez estivesse tendo um dia péssimo. Ou talvez fosse apenas alguém, assim como eu, cometendo um erro humano. E nesse breve instante de suspensão, a raiva deu lugar à compreensão.
Ainda caio na armadilha do ego, ainda reajo impulsivamente de tempos em tempos. Mas cada vez menos. E percebo que, à medida que me torno mais atento, o mundo ao meu redor também muda. Como se a realidade não apenas refletisse meus pensamentos, mas a consciência que existe por trás deles.
A Não Dualidade, percebo agora, se manifesta nesses momentos triviais. Não é algo distante ou abstrato, mas está presente em cada escolha consciente que faço. Quando vejo que o "outro" não está separado de mim, quando reconheço que o observador e o observado são uma só coisa, quando aceito cada instante exatamente como ele é, sem resistência – então, ali está a verdade não dual.
Hoje, entendo que a separação é uma ilusão funcional – útil para a experiência humana, mas, ainda assim, uma ilusão, uma miragem.
A raiva que sentia dos outros sempre foi apenas um reflexo daquilo que eu rejeitava em mim mesmo. Meu incômodo com a autoridade era, na realidade, um incômodo com minhas próprias tendências controladoras. E cada julgamento que eu fiz era como um eco do julgamento que aplicava a mim mesmo, com aquele descontrolado “crítico”, aquela voz que habita em todos nós.
Os dois segundos se tornaram, assim, uma passagem secreta para viver de forma mais saudável no cotidiano. Um lembrete constante de que posso escolher responder ao invés de reagir, de que posso ver além das aparências e tocar a unidade essencial que não só permeia mas contém tudo. Durante esses breves segundos, a camada de ilusão se abre, revelando que tudo está interconectado. Não como uma ideia filosófica, mas como uma experiência real, viva, tangível.
No fim das contas, talvez seja exatamente isso que chamamos de jornada espiritual, ou o “conhece-te a ti mesmo”. Não se trata de atingir um estado elevado e “divino” , mas de reconhecer que a consciência extraordinária que buscamos já está presente em cada momento comum, que na maioria das vezes, não prestamos atenção nem damos valor. Não se trata de nos tornarmos algo diferente, mas sim perceber aquilo que sempre fomos – a Consciência infinita brincando de ser humano, o oceano imenso que se expressa temporariamente como uma onda passageira.
E tudo começa com dois segundos.
Gracias por esa humanidad transparente que no se olvida de sí misma por más ilusoria que sea. Gracias. 🙏🏼