A flecha não espera
Como a obsessão por explicações nos afasta da vida que acontece agora
Uma história zen conta que um guerreiro, durante uma viagem, foi atingido por uma flecha envenenada 1. No instante em que alguém se aproxima para ajudá-lo, em vez de pedir socorro ou arrancar a flecha, ele quer saber de que madeira era feita, como era a ponta, de onde vinham as penas. Essa inversão absurda não é apenas uma anedota distante, é o retrato do que fazemos diariamente: diante do que é urgente, nos perdemos em detalhes, tentando entender antes de agir, como se a explicação fosse capaz de substituir a experiência imediata.
Vivemos ocupados desde sempre (fomos condicionados desta forma) em nomear e classificar tudo o que aparece, acreditando que rotular é o mesmo que conhecer, mas a realidade não se reduz a palavras. Quando eu digo “árvore”, “amor”, “tristeza” ou “medo”, parece que sei algo sobre aquilo, mas tudo o que fiz foi encobrir o impacto cru daquilo que está diante de mim com uma camada de conveniência mental, pensando, logo entendendo. Assim, transformamos a vida em um inventário de nomes e definições que dão a sensação de controle, mas que nos afastam do contato vivo com aquilo que é.
Essa compulsão por explicações nos rouba a intensidade do presente. Em vez de perceber e se deixar atravessar pelo que acontece, já corremos atrás de justificativas e teorias e, nesse processo, o mistério se dissolve, a força das coisas se enfraquece, a realidade se torna um objeto manipulado pela mente.
Não percebemos o quanto essa obsessão nos faz viver pela metade, porque estamos sempre mediando a experiência através de conceitos, e cada vez que fazemos isso nos distanciamos do simples fato de estarmos vivos.
O problema mais sério é que, como o guerreiro, invertemos as prioridades. Damos mais importância à análise do que à ação, mais valor ao que parece do que ao que é.
Enquanto discutimos de que material a flecha é feita, o veneno já corre pelo corpo. Fazemos a mesma coisa nas relações quando em vez de estar presentes fugimos para explicações, diagnósticos e justificativas; fazemos isso com as emoções quando em vez de senti-las buscamos fórmulas para encaixá-las em categorias; fazemos isso com a vida quando trocamos presença por teorias.
A mente ainda nos projeta para fora do único lugar possível de viver. Uma parte insiste em se arrastar pelo passado, tentando negociar com culpas e arrependimentos, enquanto outra se lança para o futuro acreditando que lá encontraremos a solução definitiva, um desfecho melhor, uma versão mais aceitável de nós mesmos. O presente fica reduzido a um espaço de espera, um corredor sem valor próprio, usado apenas como passagem entre memórias e expectativas.
E assim seguimos acreditando que a realidade é apenas o que podemos tocar com as mãos ou sentir como emoções que oscilam ao sabor de pensamentos incessantes. Só que até essas emoções são reflexos condicionados da mente, repetições automáticas que confundimos com vida real. Ficamos fascinados pelas faíscas que saltam do fogo e não percebemos o fogo em si.
A vida não precisa de explicações, precisa de presença.
A flecha não espera.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
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A Parábola da Flecha Envenenada, encontrada na tradição budista, ilustra a futilidade de se prender a questionamentos excessivos, como um guerreiro que, atingido por uma flecha, insiste em saber todos os detalhes antes de permitir que ela seja removida. O Buda usa essa parábola para enfatizar que a ação imediata e prática — remover a flecha — é mais importante do que satisfazer toda a curiosidade intelectual sobre o agressor ou a arma, destacando a diferença entre a dor necessária (a primeira flecha) e o sofrimento desnecessário que vem do excesso de pensamentos e da resistência (a segunda flecha).
Em outras palavras... https://guimaraesf.substack.com/p/o-cavalo-de-schrodinger