A Hipnose Cotidiana
Um mundo cheio de gente acordada por fora e ausente por dentro.
O mundo parece acordado, mas quando observo com calma percebo que a maior parte das pessoas vive longe do momento, ocupada com uma conversa mental que não descansa, enquanto o instante segue disponível, silencioso, firme, pronto para ser visto por quem tiver a coragem de parar por um segundo.
Olho sem intenção para o ambiente ao meu redor e percebo algo tão evidente que chega a passar despercebido. No escritório, no shopping, no aeroporto, no café, na rua. A cena se repete sem esforço: corpos em movimento, rostos atentos a tarefas, dedos que deslizam em telas, passos alinhados, gestos automáticos até para atravessar a rua (às vezes não dá certo). Tudo funciona, tudo acontece, mas ninguém realmente está ali. A pessoa se move no mundo enquanto a mente se move dentro dela, criando uma espécie de camada interna que define o que ela deve sentir, decidir e temer, sem que ela perceba que está sendo conduzida por um diálogo silencioso que não é seu e escolhido por ela.
Esse diálogo não é leve, ele carrega cobranças, projeções, justificativas, comparações, expectativas. É uma fala contínua que nunca se interrompe e da qual se espera mais do que ela pode oferecer, afinal, sou eu comigo mesmo não? A vida se estreita porque tudo passa pelo filtro desse pensamento que não pede licença. Ainda assim, o funcionamento parece normal, porque esse estado virou um padrão. A pessoa acorda dentro dele e adormece dentro dele, convencida de que não existe outro modo de se estar aqui.
Eu reconheço esse mecanismo porque já vivi nele sem perceber. A sensação de estar presente nunca coincidia com o instante em si. Havia uma espécie de névoa entre o que acontecia e o que eu pensava que acontecia, e essa névoa ganhava tanta força que substituía a experiência. Quando vejo esse mesmo padrão nos rostos ao meu redor, não me sinto em nada diferente ou superior, mas por familiarizado e consciente da identificação. Aqui cabe o alerta de se ter empatia, digo mais, compaixão pelo outro. É o mesmo movimento que eu já fui incapaz de nomear.
Essa ausência espalhada explica por que a feira espiritual prospera com tanta facilidade, crescendo por conveniência e não por intenção de profundidade. Esse ‘mercado” atende exatamente ao impulso de quem vive cansado da própria mente e quer alívio, mas não quer se aproximar daquilo que é desconfortável, aquilo que dói. Nesse cansaço, qualquer promessa rápida é um alento. A cada esquina surge um método que garante paz instantânea, clareza definitiva ou identidade purificada. A cada vídeo, um mestre aparece oferecendo respostas embaladas em frases suaves que prometem dissolver a inquietação sem que a inquietação seja tocada.
O que você procura já está aqui, mas sempre foi mais fácil fugir do que olhar.
Esse mercado não vende transcendência, mas é super profissional em vender distração. Se apresentando com o brilho de um caminho libertador, mas o que se vê no fundo é continuidade. Uma versão mais sofisticada do mesmo transe em que a pessoa acredita que está evoluindo porque está acumulando ferramentas, mas não percebe que continua funcionando na mesma estrutura: buscando se tornar alguém melhor do que é agora, aquele velho clichê da “melhor versão de você mesmo”. Esse ideal é atraente porque promete resolver o desconforto sem precisar encará-lo, lidando diretamente com ele. Promete que basta entender uma nova teoria, repetir uma nova prática, adotar um novo vocabulário, para que tudo se alinhe.
O desconforto não se dissolve por negação, mas somente quando se permite existir de forma inteira, transparente, sem defesa. Isso não exige técnica, mas exige algo muito em falta hoje em dia: autenticidade. Exige uma abertura que não depende de “coragem heroica”, mas depende de cansaço do personagem que tenta controlar o próprio sofrimento. Sem resistência, essa sensação perde a rigidez que parecia ameaçadora e passa a fluir naturalmente. Não há batalha alguma, precisamos de parar de tentar moldar o que já está acontecendo. O movimento se completa quando não há interferência, mas aceitação (Wu Wei) 1.
Essa é a parte que quase ninguém quer ouvir: o alívio verdadeiro não chega pela rota confortável. A pessoa tenta pular a etapa que mais importa, que é permitir que a vida seja vivida de forma inteira, atravessando dor e sofrimento. Atravessar não é dramático, é simples. O sofrimento tem um impulso natural que o leva a se esgotar quando não encontra resistência. Ele se move até tocar aquilo que é anterior a qualquer narrativa, anterior ao personagem, anterior à tentativa de organizar o mundo. Ele desemboca no que sempre esteve ali, mesmo quando parecia inacessível.
É curioso observar como a mente, ao tentar se livrar da dor, mantém exatamente aquilo que gostaria de abandonar. Ela corre para longe do incômodo e acaba fortalecendo o próprio transe. A pessoa acredita que está se libertando quando, na verdade, está reforçando a estrutura que aprisiona. Nada disso é culpa, é só hábito, um hábito profundamente enraizado e repetido ao ponto de parecer identidade. Basta um instante de presença real para perceber que não existe nada tão sólido assim. O pensamento pode continuar, mas já não define nada, é reconhecido pelo que é, um processo neuroelétrico baseado na vida que se viveu até aqui, com crenças, limitações, visão de mundo e vieses. O corpo pode manter seus vícios, mas já não precisa obedecer a todos eles. A atenção se amplia e, nesse espaço, a pessoa descobre que existe vida sem esforço.
Mas perceber isso não cria uma nova versão de si, e sim dissolve a necessidade de ter versões. Não nasce uma identidade mais elevada, nasce uma presença simples que não precisa de adjetivos.
O mundo não muda, a rotina não muda, as circunstâncias não mudam. O que muda é o ponto de onde tudo é visto. E quando isso muda, todo o transe perde força.
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“É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara.”
- O Grande Lebowski
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Nenhum autor é dono do que escreve, apenas o tradutor do silêncio que o antecede. Escrever foi o modo que encontrei de investigar o que somos quando a mente se aquieta. Cada texto nasce desse movimento silencioso da consciência tentando se reconhecer em forma. Às vezes surgem palavras, outras apenas o espaço entre elas. Não escrevo para explicar nada, escrevo para lembrar. A ficção, a ciência e o cotidiano são apenas pretextos. O que fala por trás é o mesmo silêncio que lê.
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