A Linguagem que Nos Reduz
O que perdemos quando chamamos trabalho de “entrega”
Cadu Lemos é idealizador do Projeto Flow e autor de “Antes do Pensar - Consciência e Estado de Flow como caminho para criar com leveza e autenticidade” - Editora 45
Texto originalmente publicado no meu perfil no LinkedIn.
Tem uma palavra que se instalou nas empresas como se fosse neutra, técnica, inevitável: “entrega”. Não me refiro a entrega de quem se dá, de quem se dedica, mas sim, a uma entrega de quem deposita um pacote na mesa e segue para o próximo. Veio do inglês, delivery, e trouxe junto toda a frieza de um sistema que prefere números a pessoas, processos a presença e relações.
Dizemos “fazer entregas” como se estivéssemos operando uma esteira de produção. O trabalho vira commodity, o esforço vira métrica (KPI’s e quetais) e a pessoa vira recurso, porque é isso que a palavra faz: congela o movimento vivo de criar, pensar, construir algo e transforma tudo num resultado quantificável, neutro, sem vida.
A entrega não pulsa, não respira, não carrega a marca de quem a fez. É apenas uma coisa que saiu de A e chegou em B.
E o pior é que funciona. A linguagem molda a experiência. Quando começamos a falar de entregas, paramos de falar de trabalho. Trabalho é suor, é tempo, é atenção, é a vida acontecendo enquanto você resolve um problema ou cria algo novo. Entrega é o fim, o produto, a caixa fechada. O que aconteceu no meio deixa de importar.
Quem fez deixa de importar. Só importa o que foi feito, registrado, contabilizado.
Não é coincidência que a mesma linguagem nos chame de recursos humanos. Recursos. Iguais a matéria-prima, estoque, algo a ser alocado, otimizado, substituído quando necessário. A palavra carrega a intenção: você não é alguém, você é algo. Algo que deve produzir entregas e se não produz, você é um recurso improdutivo, descartável.
A palavra “deletar” pelo menos soa ridícula o suficiente para que a gente perceba o absurdo, embora esse barco já tenha zarpado, porque há tempos é adotada e faz parte do dicionário Houaiss desde 1975. “Resetar” e “rebutar”, palavras que soam desajeitadas, toscas e revelam o quanto estamos improvisando uma linguagem que não nasceu aqui. Mas “draivar”? Draivar é o fundo do poço linguístico, o momento em que a submissão ao “corporativês” se torna tão completa que nem sequer disfarçamos mais.
Dirigir virou antiquado, conduzir é coisa de gente que não leu o manual de boas práticas. Agora a gente “draiva”. Draiva projetos, draiva equipes, draiva resultados. E vai drivando até esquecer que um dia soube falar português.
O que essas palavras fazem é simples: elas criam distância. Distância entre você e o que você faz, entre você e quem está ao seu lado, entre você e a própria vida que vive debaixo das planilhas e reuniões. Tudo vira entrega, nada mais é presença. Você não está mais ali, construindo, pensando, errando, ajustando, nada disso, apenas cumprindo um protocolo, atingindo uma meta ou fechando um ciclo.
E tem gente que acha isso eficiente. Claro que acha. Afinal, eficiência é exatamente isso: remover o humano da equação. Tornar tudo previsível, mensurável e claro, replicável.
O problema é que a vida não funciona assim e nem a criação. O trabalho que importa, o trabalho que transforma, sempre carrega a marca de quem fez. Exige presença, atenção e risco e nenhuma planilha mede isso. Nenhuma “entrega” captura isso.
A linguagem não é inocente, ela constrói o mundo e não apenas o descreve.
Quando você aceita chamar seu trabalho de entrega, você já começou a se ver como um recurso. Quando você fala em “draivar”, você já aceitou que liderar é apenas uma função técnica, algo que qualquer manual pode ensinar. E quando você reduz pessoas a recursos, você já decidiu que o humano é um incômodo, um desvio, algo a ser gerenciado.
A palavra não está a serviço da clareza, está a serviço do controle e com isso,ela facilita a despersonalização, não a comunicação.
A escolha é sua. Pode seguir usando as palavras que te foram entregues, prontas, embaladas, ou pode começar a falar de novo como alguém que ainda está aqui, presente, vivo e insubstituível.
A resistência começa na língua. Quando eu me recuso a chamar o meu trabalho de entrega, eu estou dizendo: isso aqui não é só um pacote, isso aqui sou eu.
“É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara.”
- O Grande Lebowski
Obrigado por ler O Psiconauta!
Nenhum autor é dono do que escreve, apenas o tradutor do silêncio que o antecede. Escrever foi o modo que encontrei de investigar o que somos quando a mente se aquieta. Cada texto nasce desse movimento silencioso da consciência tentando se reconhecer em forma. Às vezes surgem palavras, outras apenas o espaço entre elas. Não escrevo para explicar nada, escrevo para lembrar. A ficção, a ciência e o cotidiano são apenas pretextos. O que fala por trás é o mesmo silêncio que lê.






Maravilhoso. Fiquei feliz de perceber que nunca tinha escutado drivar, rs