A realidade nunca foi o problema
As tarifas, separação, lucidez e o preço que pagamos por não estarmos presentes nem colocarmos intenção no que fazemos.
Os Estados Unidos, sob a figura previsível de Trump, impuseram uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros e hoje acordei pensando se deveria escrever sobre esse assunto que anda borbulhando na mídia desde semana passada. Mas isso serve só de ponto de partida para o que realmente quero compartilhar.
O país mais poderoso do mundo, com um histórico conhecido de decisões unilaterais travestidas de política econômica, resolve empurrar sua força (militar ou não) goela abaixo dos outros - outra vez. Isso tudo num mundo que já vinha tenso, inflamado, instável. Mas não vou me perder em análises geopolíticas. Já tem gente demais disputando microfones para dizer o óbvio.
O que me interessa aqui é outra coisa. Uma percepção mais funda, onde política e economia são só sintomas. O que me chama atenção e sempre me chamou, é a ilusão estrutural que seguimos alimentando. A ilusão da separação. O equívoco original que, por algum motivo, seguimos ignorando como se não estivesse bem diante dos nossos olhos. O mundo reage a esse tipo de medida como se fosse algo novo, como se estivéssemos caminhando rumo ao colapso. Mas esse colapso não começou agora. Ele é antigo. Lento. Quase elegante na forma como se esconde sob as engrenagens da civilização.
Vivemos como se fôssemos entidades isoladas, cercadas por inimigos potenciais, defendendo ideias que nem escolhemos, reagindo com orgulho ferido diante de qualquer ameaça, mesmo que simbólica, seguindo convencidos de que isso é pensar por conta própria.
Desde sempre, fomos uma tela em branco preenchida com ideias alheias. Pensamentos que herdamos, valores que nunca questionamos, conceitos que repetimos por inércia.
Em algum ponto, deveríamos ter saído dessa adolescência cognitiva e assumido uma vida adulta, com pensamento crítico, com presença. Alguns conseguem. A maioria adia indefinidamente.
E enquanto isso, vamos sendo empilhados dentro de um estilo de vida tão ruidoso por dentro quanto por fora. Um modo de viver que nos anestesia com distrações, entretenimento, tarefas, metas, mais entretenimento. Não sobra tempo e nem silêncio para simplesmente estar. Solitude virou sinônimo de solidão. Quietude virou desinteresse. A gente se entope de estímulo para não precisar encarar o óbvio: que algo lá no fundo continua inquieto.
E no meio disso tudo, ainda tem quem se beneficie. Uma minoria que domina a arte de manipular, que confunde acúmulo com sucesso e que lucra com o medo, com a ignorância e com a esperança alheia. Uma elite que usa o poder justamente pra garantir que ele continue concentrado. Isso também não é novo. O mundo sempre foi violento, desigual, tribal. A diferença é que agora temos hashtags.
O ser humano vive espantado com sua própria brutalidade, como se não a conhecesse, mas ela está aí, sempre esteve. Em forma de guerra, de tarifa, de exclusão, de silêncio. Esse modo de operar baseado em "isso é meu, o resto você que lute" é só a versão moderna do tribalismo ancestral ou daquela velha frase “farinha pouca meu pirão primeiro”…
E é aqui que entra o ponto central. Quando relembramos, e eu digo relembrar, não aprender ou descobrir a nossa natureza real, o que surge não é poder, nem iluminação, nem salvação. O que surge é aceitação. Simples, crua, inegociável. Aceitar o que é, como é, sem resistência. Isso não tem nada a ver com desistência, conformismo ou niilismo. É outra coisa. É perceber que a tentativa de mudar a realidade por força bruta, por idealismo ou por negação, é só mais uma camada de sofrimento.
Aceitação não é se render. É parar de lutar com o que já aconteceu.
Perceber que o desespero e a esperança são irmãos gêmeos, e que os dois nascem da recusa do que está aqui, agora. O que quer que seja. Quando espero que algo mude, coloco minha sanidade nas mãos de algo que não posso controlar. E quando essa expectativa não se cumpre, me afundo, muitas vezes, nem percebendo que fui eu mesmo quem cavou o buraco.
A maturidade talvez comece quando entendemos que não há escolha. Só há o que é. E diante disso, resta aceitar. Mas aceitar não é passividade mas sim, lucidez. É parar de desperdiçar energia tentando empurrar o rio.
Lidar com o que se apresenta, sem fantasiar o futuro nem mastigar o passado, pode ser a única forma de sanidade que nos resta num mundo onde quase tudo é delírio coletivo.
E talvez, só talvez, comece aí a pergunta que realmente importa: por que seguimos sentindo que estamos separados? Por que o outro virou ameaça, concorrente, obstáculo?
Krishnamurti1 uma vez perguntou: por que nossa segurança depende da insegurança do outro? E é isso. A estrutura toda se sustenta nessa fantasia de separação. “O outro” não existe. O que faço com ele, faço comigo. Não é poesia. É literal e não tem nada a ver com moral ou religião. Tem a ver com percepção direta. Quando se vê, quando se percebe, não há mais como “desver”.
Esse reconhecimento não exige fé, nem estudo, nem retiro espiritual. Ele às vezes aparece de forma inesperada. Num instante. Um lapso em que tudo silencia, e a separação perde o sentido. É breve e frágil. A mente logo volta correndo para nos proteger, para nos dividir, para nos lembrar quem somos — ou quem ela acha que somos. Mas, por um instante, algo se abre. E o que aparece ali tem verdade.
É simples. Tão simples que assusta. E ao mesmo tempo, é tão óbvio que chega a ser ridículo não termos visto antes.
Claro, tudo isso não faz o menor sentido para quem está imerso num modo de viver automático, cheio de distrações e demandas, mas vai chegar o momento em que não tem mais como fugir. Aqueles sentimentos que empurramos para baixo do tapete, que tentamos ignorar ou “resolver depois”, uma hora batem na porta. E aí não tem podcast, viagem, nem remédio que resolva.
O caminho é simples, mas exige algo raro: intenção. Não desejo. Intenção. Uma vontade real de observar, de dar um passo atrás, de se colocar num lugar neutro, lúcido, silencioso. Um lugar onde tudo passa e nada gruda. Uma consciência que vê sem julgar, que sente sem resistir, que está sem querer mudar.
E aí, talvez pela primeira vez, a gente perceba que a realidade nunca foi o problema.
Se ainda parece loucura, talvez seja um bom sinal.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
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Jiddu Krishnamurti (1895-1986) foi um filósofo, escritor e orador indiano conhecido por suas reflexões sobre a natureza da mente, a liberdade humana e a transformação psicológica. Ele questionou as estruturas de autoridade e tradição, enfatizando a importância do autoconhecimento e da observação direta para a compreensão da realidade.
https://kfoundation.org/l/pt-krishnamurti-biography/
Ótima reflexão. Acredito demais no poder da colaboração, que está cada vez mais perdendo espaço para o sucesso individual, afinal essa narrativa é uma ótima estratégia de controle.