A Sala de Espelhos: Reflexões sobre Nossa Verdadeira Natureza
Como nos perdemos de nós mesmos — e o que nos reconecta à Consciência que somos
Outro dia, ouvi um áudio de um praticante do budismo tibetano que compartilhava cinco lembranças essenciais que, segundo ele, deveríamos revisitar com frequência:
Não estou isento de envelhecer.
Não estou isento de adoecer.
Não estou isento de morrer.
Tudo o que me é precioso um dia se transformará ou desaparecerá.
Sou herdeiro das minhas próprias ações.
Por alguma razão difícil de explicar, vivemos como se essas verdades não se aplicassem a nós. Seguimos em frente distraídos, como se o tempo, a impermanência e a morte fossem coisas que só acontecem aos outros. Nossa relação ensimesmada com a realidade se parece com aquelas antigas salas de espelhos dos parques de diversões, onde, para onde quer que eu olhasse, via apenas o meu reflexo — distorcido, invertido, às vezes de cabeça para baixo, mais gordo ou magro, mas sempre girando ao redor de mim mesmo. Ou daquela imagem, daquele aparato corpo/mente que chamamos de “eu".
A condição humana nos empurrou para esse lugar: um autocentramento ancestral, moldado como estratégia de sobrevivência. Proteger a vida, garantir continuidade, passar o DNA adiante — esse é o script biológico que herdamos. Mas há uma falha fundamental nesse processo, e é dela que nasce boa parte ou talvez a totalidade do nosso sofrimento.
Desde cedo, nossos pais — como os pais deles, e os ancestrais antes deles — nos ensinaram a ver o mundo como algo “lá fora”, separado de quem somos. Ganhamos um nome, aprendemos os nomes dos outros, das coisas, e com isso surgem os rótulos, os julgamentos, as comparações. A linguagem, essa ponte que nos conecta, também é o alicerce da separação. Lentamente, nos transformamos em navios solitários navegando por um mar infinito, acendendo lanternas na escuridão da noite e soprando buzinas através da névoa densa, numa busca incessante por outros navegantes que confirmem que não estamos sozinhos nesta vastidão, que fazemos parte da mesma jornada.
Lembro quando minha filha tinha apenas dois anos. Começou a apontar para os objetos e perguntar, com aquela insistência encantadora das crianças pequenas: “O que é isso?” A cada resposta minha, seus olhos brilhavam como se mais uma peça do mundo se encaixasse no quebra-cabeça. Só mais tarde percebi: ao mesmo tempo em que eu oferecia a ela um instrumento de navegação, eu também plantava — sem querer — as sementes da separação.
É aí que começa o desencontro. Não entendemos que esse ato de nomear, de classificar, é uma estrutura simbólica, apenas um código de conveniência, uma ferramenta que possibilita e facilita nossa relação em sociedade. É um jogo coletivo e confundimos as regras desse jogo com a realidade implícita. Nos perdemos quando criamos a certeza de que essa é a única forma de ver e viver o mundo. Precisamos de menos certezas, diz o filme “Conclave”, que assisti recentemente.
Teria sido tão transformador se, desde pequenos, pudéssemos ter ouvido: “Você é parte de uma única Consciência, e aquilo que percebe em você é o mesmo que percebe em mim.” O que chamamos de “eu” é apenas a Consciência brincando de ser pessoa, vivendo uma experiência física neste lugar que chamamos de realidade.
Às vezes, diante do mar, essa verdade me atravessa sem esforço. As ondas surgem com formas próprias, parecem individuais por um instante... e então voltam ao oceano. Nunca estiveram realmente separadas — eram expressões temporárias da mesma água. Assim também somos nós: formas passageiras da mesma Consciência, cada uma com seu contorno, seus movimentos, sua duração.

Quem está lendo estas palavras? Quem está escrevendo? Se olharmos com atenção, se formos fundo mesmo, não encontraremos uma resposta que não seja esta: O que está lá é apenas uma Presença consciente, desperta, experimentando a si mesma por meio de bilhões de perspectivas. Cada ser humano é uma combinação única de condicionamentos, crenças, histórias e emoções — e ainda assim, por trás de tudo isso, há uma única Inteligência, silenciosa e viva, sustentando o espetáculo.
Nos raros momentos de clareza, percebo: passei boa parte da vida buscando algo que nunca esteve perdido. Sabe aquela típica situação de procurar agitadamente pelos óculos que estão sobre a própria cabeça? É isso.
A separação que sentimos não é real — é uma construção do pensamento, um truque da mente identificada com a narrativa pessoal equivocada que chamamos de “minha vida”.
Mas essa compreensão não é um conceito bonito. É uma revelação experiencial. Um entendimento que, quando vivido, transforma profundamente nossa relação com tudo. Quando a fronteira entre “eu” e “outro” se dissolve, mesmo que por um breve instante, o sofrimento perde seu chão. Não há ninguém separado para sofrer. Há apenas a experiência se desdobrando na vastidão da consciência.
E, ainda assim, eu esqueço. Volto aos velhos padrões, à identidade que construí ao longo da vida, ao eu ferido e assaltado pela raiva:
Mas agora vejo esse retorno com mais suavidade. Já não me julgo por esquecer — apenas sorrio, como quem reconhece um filme já assistido.
A ideia aqui não é alcançar um estado definitivo de iluminação, isso não existe, não existe um despertar, apenas um reconhecer. Aprender a se movimentar no limiar entre o pessoal e o impessoal, entre o tempo e o atemporal, entre a Forma e o Vazio.
Para muitos, esse reconhecimento é um choque difícil de assimilar, afinal, todas as crenças e estruturas que pareciam sustentar a lógica de nossas vidas são pulverizadas pela revelação de que somos uma só Consciência e sempre estivemos aqui.
Esta angústia existencial foi belamente capturada por Chögyam Trungpa quando afirmou que é como se tivéssemos sido jogados para fora de um avião sem paraquedas. Tudo que acreditávamos se desmonta, e ficamos sem chão.
A boa notícia é que não há chão. Nunca houve. E nessa queda livre, descobrimos que somos o próprio céu.
"Sim, bem, essa é apenas sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski