A Última Máquina
Entre coleções, lembranças e a ilusão de controle, uma jornada da obsessão ao silêncio interior
Compulsão
Melhorei muito nesse quesito pelo que posso avaliar de maneira breve. Talvez seja uma característica do meu Asperger1, agora chamado de espectro autista. Nunca soube sofrer de tal enfermidade – que também não é, já que era uma síndrome e não uma doença.
A primeira vez que tomei contato com essa palavra foi quando minha filha, Duda, foi diagnosticada, já tardiamente, com essa condição. Quando isso aconteceu, há quase 20 anos atrás, não me dei conta de que eu tinha a mesma síndrome, embora em grau mais leve. Talvez não notasse nada fora do comum por conta da forma com que fui criado: nos anos 60 nem se falava nisso, e minhas características de impaciência e rebeldia eram tratadas com rigor pelo meu pai, inclusive com violência física. Ao reprimir as minhas reações essenciais, ele sem querer ou saber me ajudou a superar algumas dificuldades sociais por "treiná-las" para me adaptar às circunstâncias.
Com isso, vivi uma vida aparentemente normal, mas no meu íntimo a coisa era bem diferente. Compulsão era uma das principais reações naturais quando eu me via interessado em algum assunto ou objeto. Pessoas também, mas isso viria mais tarde e para minha sorte, sem nenhum tipo de consequência negativa, talvez até pelo meu “treinamento” paterno.
Me recordo claramente de que, por conta do meu interesse em leitura, colecionei uma quantidade absurda de revistas, especialmente de carros e aviões – assuntos que preencheram a minha infância e adolescência. Quando um tema chamava a minha atenção, aquilo se tornava o meu mundo particular e só ali minha mente habitava.
Claro que isso me traria algumas dificuldades sociais e relacionais. Todo mundo cobrava de mim uma certa naturalidade no conviver, algo que nunca foi muito fácil para mim, especialmente porque meu mundo era suficiente. Livros, revistas e alguns LPs e compactos serviam como trilha sonora da minha vida reclusa. Isso duraria um bom tempo e me privaria de um amadurecimento que era natural para meus amigos e colegas com a mesma idade. Lps e compactos? Se você não sabe o que é, veja aqui:
Ainda hoje, 50 anos depois, a compulsão me assalta, mesmo com minha vida totalmente diferente, mais simples e frugal, sem precisar de nada além do que já tenho. Um bom exemplo disso são as coleções que tive ao longo da vida: miniaturas de carrinhos, trens elétricos, bonés e máquinas de escrever (essas, mais recentes). Os bonés, não sei explicar bem – talvez porque ali pelos 40 anos comecei a perder cabelo e no fim acabei gostando de usar.
As máquinas de escrever têm uma ótima explicação e, apesar da compulsão da coleção (recente e inesperada, mas prometo que a última máquina já chegou), me ajudam a colocar para o mundo muitos dos meus sentimentos e entendimentos sobre a vida. A minha vida, claro, já que só posso falar sobre aquilo que acontece comigo.
Ao escrever usando uma máquina e não um computador, consigo gerar um foco e concentração que não era possível antes, um verdadeiro portal particular para acessar o estado de flow. Tive o privilégio de, na minha infância aos 12 anos, aprender a datilografar e até hoje meus dedos acompanham com fluidez o ritmo dos meus pensamentos, costurando palavras que vêm de um lugar mais profundo. O engraçado é reler os textos e não saber exatamente como foram escritos e de onde vieram…
No entanto, depois de concluir estas linhas, me peguei no flagra refletindo sobre o efeito da compulsão sobre mim. Mas afinal, é sobre mim ou sobre o "aparato" corpo/mente que chamo de EU e esqueço que não é algo independente e separado de tudo o que me cerca? Essa é, seguramente, a maior ilusão que se abate sobre a natureza humana e com efeito mais devastador.
Essa impressão que nos foi colocada desde que começamos a distinguir coisas e pessoas, ensinados primeiro por nossos pais e tutores e pela sociedade, é tão real quanto Harry Potter.
A cobrança que se abate em todos nós para que nos tornemos uma melhor versão de nós mesmos é cruel e falsa também. Somos vividos pela vida, parte de uma única Consciência que tudo contém. Vazio é forma, forma é vazio. Não sou meus pensamentos nem meu corpo. Eles existem. Um é fugaz e se dissolve, outro vive até que morre, passando por estágios de degradação e também de transformação contínua.
Então quem sofre a compulsão, impulsionado por seus pensamentos, desejos e emoções?
Quando o entendimento surge, de forma inesperada, como num flash, fica claro que aquele que sofre não existe. É um personagem construído ao longo do tempo e de uma ilusão que se apresenta como realidade. Portanto, se entendo isso, algo inédito acontece. As situações continuam se apresentando, inclusive as compulsões, mas já não me afetam. Sei de sua superficialidade e de que não preciso de nada além do que já tenho. Material e espiritualmente sou inteiro, sou parte de algo muito mais amplo e inexplicável. Palavras são insuficientes para transmitir esse entendimento, o que torna sua realização uma tarefa estritamente pessoal e intransferível. Em meus textos, tento usar as palavras para provocar uma reação instintiva, não intelectualizada.
Há que se morrer em vida. Tudo o que era realidade para mim passou a ser como uma miragem no deserto – de perto não há água, mas sim um deserto onde se vive quando se está preso ainda naquela ilusão. Então, aceitar a vida como ela se apresenta e se deixar levar por ela, com as coisas boas e ruins que ela traz, passa a ser viver de verdade, sem expectativas, sem medo, sem esperança. É o que É.
Essa redescoberta me fez viver de forma mais leve e feliz. Não que não hajam mais adversidades, mas principalmente porque vejo tudo como um filme, onde não sou apenas o diretor (aquela figura que pensamos estar atrás dos nossos olhos e entre as orelhas) mas também o ator, o personagem e a platéia. Tudo ao mesmo tempo agora. Ah, faltou dizer que também sou a tela onde o filme é projetado. O ator, o diretor e o personagem, assim como a platéia, são efêmeros. A tela não.
Muitos de nós nos confundimos com o personagem e esquecemos que antes de tudo somos o ator. O ator pode escolher sair do personagem e entender que existe algo fora do filme. A platéia, quando as luzes se acendem no final da projeção, também segue a viver sua vida.
Mas isso não é tudo. O entendimento vem quando percebemos a tela como algo que não se altera. O incêndio do filme não a queima. O mar e suas ondas não a molham. Ela segue serena esperando sua próxima sessão. Assim como a Consciência que nos dá vida e nos habita nesse corpo/mente que insistimos ser nossa individualidade.
Essa noção traz consigo uma dicotomia relevante. Diante desse entendimento, podemos florescer numa pós-morte em vida. Mas também podemos cair numa espiral descendente de depressão pela perda de tudo aquilo que acreditávamos ser real.
Alguns, de forma niilista, passam a adotar uma atitude de "largar a mão", abandonar seus valores e até mesmo a vida cotidiana, passando a se entregar a prazeres e futilidades já que não há "livre arbítrio" mesmo... Ou ainda, pior, acelerar o fim de sua permanência nesse lugar magnífico em que estamos. Com conflitos mundiais acontecendo o tempo inteiro, não tem solução mesmo, não é? Então por que eu vou me importar?
Mas o redescobrir, o re-conhecer, traz algo inimaginável: o fato de tudo estar certo, tudo estar bem, mesmo que não pareça. Basta ver a linha do tempo da história do homem e suas conquistas, mas principalmente a da natureza e suas recuperações. Tudo se encaixa em algum momento, tudo está sempre bem, ainda que neste momento não dê esta impressão.
E o outro lado da moeda: a aceitação e a leveza de ser vivido pela vida e não o contrário. Nesse momento, tudo está bem. Está doente? Seu corpo físico está. Não você.
Isso muda tudo.
E no entanto, não muda nada.
Porque nada foi realmente mudado — apenas revelado. O que se altera é a percepção, não a essência. Aquilo que acreditávamos ser — um eu separado, com vontades próprias, desejos, histórias e conquistas — era apenas um reflexo condicionado no espelho da Consciência. Um reflexo que confundimos com a própria realidade.
A não dualidade aponta para o óbvio esquecido: não somos entidades isoladas, habitando corpos distintos e interagindo com um mundo externo. Somos o campo no qual tudo isso se manifesta. Pensamentos, emoções, compulsões, sensações — tudo isso aparece e desaparece diante de algo que não aparece nem desaparece. Um fundo silencioso e constante, que não pode ser tocado pela mudança, mas torna toda mudança possível.
Nesse reconhecimento, a compulsão perde seu status de distúrbio, de falha a ser corrigida. Ela simplesmente é. Surge no campo da experiência como qualquer outro fenômeno: impermanente, impessoal, condicionado. O erro foi assumir que havia “alguém” por trás dela. Mas o que existe é apenas o movimento da vida acontecendo, por si só, em si mesma.
Não há nada a defender, nada a controlar, nada a conquistar. A experiência acontece, mas o sentido de agência — de ser o autor de tudo — se dissolve como neblina quando surge sol.
Na ausência desse “eu”, surge uma liberdade que não depende de escolha. Uma paz que não se opõe ao conflito. Uma presença que não exige ausência de pensamentos ou emoções — porque sabe que tudo é expressão da mesma fonte. O silêncio não é a negação do ruído, é o seu fundamento.
A ilusão da separação é o único sofrimento real. Quando ela se desfaz, ainda há dor, ainda há alegria, ainda há perdas e ganhos, mas tudo se dá dentro de uma clareza serena: nada é pessoal. Nada é permanente. Nada está fora do todo.
E assim, não resta mais nada a fazer. Nenhum lugar a chegar. Nenhum ideal a sustentar.
A vida, como é, basta.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
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A síndrome de Asperger, também conhecida como Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) nível 1, é um transtorno do desenvolvimento neurológico que afeta a forma como o cérebro processa informações. É caracterizada por dificuldades significativas na interação social e comunicação não-verbal, além de comportamentos repetitivos e interesses restritos.
Que coleção top!! Tenho que me atentar também para não ceder ao impulso e criar coleções enormes, mas vira e mexe a gente encontra mais um item raro e incorpora (no meu caso são plantas).