Além do Túnel de Realidade
Como cada experiência singular aponta para a Consciência única. Ensaio "Fronteira Interior".
“Todo tipo de ignorância no mundo resulta de não perceber que nossas percepções são percepções. Acreditamos no que vemos e então acreditamos em nossa interpretação disso, nem mesmo sabemos que estamos fazendo uma interpretação na maioria das vezes. Achamos que isso é realidade.”
– Robert Anton Wilson
Nossa experiência de vida acontece aqui e agora, simultaneamente para todos nós. No entanto, há uma diferença fundamental: a perspectiva dessa experiência é individual, não coletiva. Embora cada um de nós pareça viver em um universo particular, somos, na verdade, expressões momentâneas da mesma Consciência infinita. A separação que sentimos é apenas um véu de ilusão criado pela mente.
Tomemos como exemplo o ato de ouvir uma música. Sentados no mesmo ambiente, sob as mesmas condições acústicas, dois indivíduos escutam a mesma melodia de maneiras distintas. Um pode perceber com mais intensidade os acordes do piano, enquanto outro se envolve mais com a percussão. Nenhum está errado. Cada um está filtrando a experiência através de seu próprio "túnel de realidade"1, como descreveu Robert Anton Wilson, autor de diversos livros provocadores, em especial, “A Ascensão de Prometeus”, onde ele explica o conceito.
Wilson argumenta que não apreendemos a realidade em sua totalidade, mas a filtramos por meio de condicionamentos culturais, linguagem e experiências pessoais. Nosso corpo e mente funcionam como um sistema de interpretação, moldando a percepção do mundo. Assim, a música é uma, mas a experiência da música é múltipla. Essa multiplicidade, no entanto, não indica separação, mas a infinita diversidade de manifestação da mesma Consciência única.
Ouço a melodia novamente. Percebo que não estou apenas escutando uma sequência de notas — estou tendo uma experiência singular que ocorre na intersecção de infinitas variáveis: memórias de outras músicas que já ouvi, as circunstâncias em que as escutei, as pessoas com quem estive. Minhas associações culturais entram em cena, lembrando-me de momentos marcantes em que aquela música esteve presente, de filmes, de celebrações e de emoções despertadas. Meu ouvido, moldado pela minha biologia e pelas experiências musicais ao longo da vida, dita quais frequências me impactam mais profundamente. Meu estado de espírito no momento influencia como percebo essa melodia, pois se estou alegre, triste ou contemplativo, a música parece adquirir tonalidades emocionais distintas.
Mas essa experiência não começa no momento em que a música atinge meus ouvidos. Antes disso, há uma história extensa e interligada que precede cada nota. A música carrega em si a essência dos instrumentos que a compõem, a madeira do violino que vibra com séculos de história, o metal das cordas do piano, as mãos do compositor que, em algum momento, captaram a melodia que emergia do silêncio. Há a interpretação do músico que a executa, seu estado emocional no momento da gravação ou da performance ao vivo, seu toque singular no instrumento. Cada acorde contém o trabalho de inúmeros fatores que convergiram para que esse som chegasse até mim. O timbre, a técnica, a tradição musical de sua origem — tudo isso se entrelaça na experiência que se revela em um simples instante de audição. Ao escutar essa música, não estou apenas ouvindo um som, mas sim participando de um ciclo que envolve a história, a natureza e a expressão humana.
E você, ouvindo a mesma música, habita outro universo experiencial completamente distinto. Seu ouvido se desenvolveu de outra forma, suas memórias associadas à música são diferentes das minhas. Talvez o timbre que identifico como melancólico seja, para você, algo inspirador. Talvez a leveza da melodia que aprecio soe intensa para você. No entanto, por baixo dessa aparente separação, existe uma unidade fundamental que nos conecta. A música, em si, é uma só, mas se desdobra em múltiplas experiências.
A metáfora da floresta nos ajuda a compreender esse conceito. Cada árvore parece uma entidade separada, mas, debaixo da terra, suas raízes estão interligadas por uma vasta rede , os fungos que se comunicam o tempo todo. Embora cada árvore se expresse de maneira distinta, todas fazem parte de um único organismo vivo. Da mesma forma, nossas percepções individuais emergem de uma única Consciência, da qual somos manifestações transitórias.
A sensação de separação que sentimos é apenas uma ilusão gerada pelo funcionamento da mente. A mente, operando dentro de seu túnel particular, cria a impressão de que somos indivíduos distintos, mas, em um nível mais profundo, não há separação. Os grandes mestres espirituais apontam para essa verdade atemporal: há apenas uma Consciência Presente, expressando-se através de bilhões de formas diferentes.
Nosso corpo e nossa mente não são nossa identidade última. São apenas instrumentos, veículos através dos quais a Consciência experimenta a si mesma. Assim como as ondas não são separadas do oceano, nós não estamos separados da totalidade. A Consciência única se manifesta em infinitas expressões, olhando para si mesma através de cada olhar, ouvindo-se em cada som, experimentando-se em cada sensação.
Quando reconhecemos que não somos apenas um corpo e uma mente, mas a própria Presença que habita e transcende tudo, percebemos que nunca estivemos separados do Todo. A experiência da vida não pertence ao indivíduo, mas à própria Consciência que a vive através de cada ser. Quando olhamos para além das limitações da mente e do corpo, percebemos que não há nada fora de nós, pois não há "fora". Tudo é Consciência em fluxo contínuo, criando e experienciando a si mesma em infinitas formas.
O que chamamos de "eu" é apenas uma aparência dentro dessa vasta realidade. O "eu" que busca compreender essa verdade já é a própria Consciência se perguntando sobre si mesma. Quando dissolvemos as barreiras da identidade limitada, percebemos que somos a própria vida, indivisível e infinita.
A cada acorde, a cada respiração, a cada instante, é a Consciência única que se experimenta, se expressa e se contempla. Nada está separado do Todo, pois não há um "outro". Somos a própria expressão da Consciência infinita, em um jogo de formas que se desdobram sem cessar.
Ao dissolvermos a ilusão da separação, percebemos que nunca fomos um indivíduo isolado, mas sempre a própria Presença infinita. Quando transcendemos a ideia do "eu", reconhecemos que nunca estivemos separados do Todo, porque sempre fomos Ele. Não há um "outro", não há um "eu" distinto do universo. Há apenas a Consciência vivendo a si mesma, em uma dança eterna de formas e percepções. Somos a música e aquele que a escuta, somos a floresta e cada uma de suas árvores, somos o oceano e todas as suas ondas.
"Sim, bem, essa é apenas sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
Obrigado por ler O Psiconauta!
Mantenho tudo aqui gratuito e de fácil acesso, sem compromisso. Se você achar útil, a melhor maneira de apoiar é por meio de um restack ou recomendação e compartilhamento da publicação - isso faz uma grande diferença. Aproveite e que o flow esteja com você!
Todos nós estamos constantemente inundados por uma quantidade insondável de informações sensoriais. Tudo o que está em seu campo de visão, cada som de fundo, o gosto do ar, a sensação do seu corpo etc. etc. etc.
Existir no mundo é filtrar todas essas informações até o conjunto de observações que podemos gerenciar. Não há duas pessoas que, ao receberem o mesmo conjunto de informações sensoriais, as filtrarão exatamente da mesma maneira.
Nossa percepção do mundo, da natureza da realidade em si, é limitada o tempo todo pelas observações sensoriais que permitimos passar por nossos filtros. Isso significa que estamos sempre operando a partir de uma posição filtrada.
Todos os fatos em que acreditamos, todos os valores que projetamos no mundo, todas as ações que realizamos - tudo isso se baseia nessa posição filtrada. Removemos a maior parte de nossa experiência sensorial e construímos uma "realidade" a partir do que restou. Wilson chamou isso de "Túnel da Realidade".