Aqueles que já fomos
O que muda em nós não se perde, só revela a ilusão de quem pensamos ser.
“Já perdi o contato com algumas das pessoas que já fui.”
A frase é de Joan Didion, escritora americana que viveu na segunda metade do século XX dona uma lucidez cortante. Didion escrevia sem medo de se despir na página, transformando fragilidade em força. Não fazia concessões nem ao sentimentalismo, nem à rigidez intelectual. Seu livro descrevendo o ano que se seguiu após a morte do marido é um exemplo (The year of magical thinking). Quando ela diz que perdeu contato com antigas versões de si mesma, não há lamento, há apenas honestidade. Quem encara a vida de frente sabe que já deixou pelo caminho pessoas que um dia acreditou ser. A Netflix tem um documentário sobre ela.
Eu também já perdi contato com pessoas que habitaram este corpo. Quando encontro conhecidos que não vejo há muito tempo, a cena costuma ser leve e até engraçada. Primeiro vêm os comentários óbvios: a aparência física, o cabelo que já não tenho e que entreguei à máquina zero, a barba de lenhador que agora me acompanha. Depois surgem as lembranças de episódios antigos, nem sempre boas memórias. Algumas delas ainda carregam o peso de atitudes das quais não me orgulho.
Durante muito tempo, meu ego se apresentou como guardião e protetor. Eu acreditava que ele era meu escudo. Engano. O que realmente se passava era um personagem frágil tentando se passar por forte. Meu esforço era defender território, provar valor, convencer o mundo de que eu era capaz. O ego ocupava o trono, ruidoso e inseguro, ditando o ritmo da vida.
Eu costumava dizer, nesses reencontros, que não havia mudado, apenas voltado a ser quem sempre fui. Hoje percebo o engano. Nunca permanecemos iguais.
A vida não é retorno, é fluxo contínuo. O corpo muda todos os dias, células morrem, outras nascem. Emoções aparecem e desaparecem com a mesma rapidez que chegaram. Os pensamentos se revezam, as convicções se corroem, novas percepções ganham espaço. A vida é mudança em estado bruto, e o que mais me surpreende é como conseguimos viver sem notar o óbvio.
Minha transformação não foi um plano racional, não nasceu de cálculo mas talvez de intenção. Foi mais como um relance, um flash, uma lembrança atávica que escapou do controle da mente - leia aqui:
O Rio
É como se estivéssemos observando um rio à partir da margem. Assim imaginamos a vida fluindo por nós com todos os seus acontecimentos, pessoas, objetos e consequências. Nos mantemos separados por uma noção equivocada de que somos o sujeito e tudo o que nos circunda são meros objetos (tem gente que inclui nisso também pessoas ).
À medida que certezas quebravam e decepções me rasgavam por dentro, o barulho foi cedendo. O que restou foi abertura. Aprendi, sim aprendi - não veio de fábrica - o que era compaixão, empatia, escuta, mas não porque eu me tornei “melhor”, mas porque resistir à vida e às circunstâncias era exaustivo. Ainda é.
Foi nesse ponto que compreendi melhor o que Gurdjieff chamava de “lembrar de si”. George Ivanovich Gurdjieff, mestre grego-armênio do início do século XX, dizia que vivemos como máquinas, reagindo sem consciência. O “lembrar de si” não é recordar o passado, mas um choque de presença: perceber de repente que estou aqui, agora. Essa lucidez desmonta a ilusão de um eu fixo e abre espaço para algo mais vasto, mais silencioso, que sempre esteve aqui.
Bernardo Kastrup, filósofo contemporâneo e defensor do idealismo analítico, usa uma imagem que me acompanha. Para ele, a vida é como um rio que às vezes forma redemoinhos. O redemoinho parece ter bordas, uma identidade própria, mas nunca deixou de ser água. Assim também nós: acreditamos ser a forma passageira, esquecendo a substância. O redemoinho dura um tempo, depois se desfaz, e a água segue seu curso. Leia abaixo o ensaio sobre ele:
Essa imagem do rodamoinho ganhou peso quando uma amiga, depois de perder a mãe, me disse em lágrimas: “Não consigo aceitar a morte… mas sei que ela ainda está aqui, de algum jeito, porque nada nela se perdeu, só mudou de forma”. Ali estava, em carne viva, a mesma clareza: somos água antes de sermos redemoinho.
Não há dois. Não há separação. Eu não me limito ao corpo nem à mente. Sou a vastidão que abraça tudo, o infinito que não cabe na imagem de “eu”. O que vejo - e sinto - de dentro, é o mesmo que me olha de fora. Não existe sujeito nem objeto, apenas o ver acontecendo. Não existe quem ouve, apenas o ouvir. Não há separação entre a água que nasce na fonte, a que corre no rio, a que bebo e a que pulsa agora em minhas veias. É tudo uma coisa só, simultaneamente independente e absolutamente interdependente.
Somos o vazio que abraça a forma e as formas que surgem nesse vazio. Mas mesmo isso é pouco. Palavras não são suficientes para destrinchar essa experiência, tropeçam quando tentam dar conta, e a mente, ansiosa por classificar, transforma em conceito o que só pode ser vivido.
Mudança não é perda, na verdade é uma revelação. O que se perde é a ilusão de que ainda somos apenas o redemoinho.
“É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara.”
- O Grande Lebowski