Escrever na Água
Por que o tempo só parece existir quando acreditamos nele
Chamamos de presente aquilo que já não está aqui. Insistimos em medir o instante enquanto ele se dissolve, e na pressa de provar que o tempo existe, perdemos o que realmente está vivo.
Tenho pensado muito sobre a maneira como organizamos nossa vida em torno de relógios, agendas e datas, especialmente agora que a virada de ano se aproxima. Essa engenharia do tempo sustenta compromissos, cria uma ordem aparente e nos dá a sensação de que viver pode ser controlado, como um tabuleiro externo no qual encaixamos movimento após movimento. É eficiente, ninguém pode negar, e talvez por essa eficiência tenhamos parado de questionar o que sustenta essa estrutura, como se o tempo fosse um objeto sólido que nos acompanha desde sempre.
Gosto de observar como essa ideia desmorona quando olhada com mais cuidado. Escrever o próprio nome na água descreve melhor do que qualquer tratado. No instante em que a primeira letra se insinua, ela já começa a desaparecer. Assim acontece com tudo que chamamos de presente. Enquanto tento descrevê-lo, escrevendo estas palavras, ele se move, escapa, se dissolve, e o mais honesto seria admitir que cheguei tarde demais. A palavra “agora” vira um rótulo tardio sobre algo que já não está, mas seguimos usando como se fosse estável.
Continuo a notar que esse jogo se estende às memórias. Se eu pensar, ou tentar me lembrar de um episódio antigo como referência, ele já não é o mesmo de quando foi vivido. Fui eu quem o alterou enquanto crescia, enquanto acreditava em coisas diferentes, enquanto acreditava ser alguém diferente. Vamos moldando as memórias de acordo com a conveniência do momento. Posso traçar um paralelo com o hábito de reler livros que foram decisivos e perceber que este leitor mudou muito mais do que as páginas.
A lembrança se ajusta a crenças, humores e expectativas, por isso nunca permanece íntegra. Ainda assim depositamos tanto valor nela que esquecemos o óbvio: ela só existe quando a pensamos e quando a pensamos, já a reinventamos.
Com o futuro acontece algo parecido. Ele sempre chega como projeção, imagem mental moldada pelo medo, desejo ou expectativa. A mente sustenta, redesenha, reveste de significado e, enquanto ela faz isso, mantém a ilusão de continuidade. No ritmo da experiência viva, o que se apresenta nunca obedece ao desenho que fizemos inicialmente. O tempo pessoal se revela frágil e, penso eu, um pouco cômico.
Quando essa fragilidade se mostra, alguma coisa se ilumina. O instante deixa de ser um ponto fixo e passa a ser visto como fluxo constante, surgindo e desaparecendo sem bordas. Nada permanece, só a aparição e o sumiço. Nessa dança a presença não se mexe, ela percebe a mudança e não obedece ao relógio, apenas registra o que vem e vai. Esse reconhecimento muda a textura da vida sem mudar a forma. O corpo continua vivendo, respondendo a demandas, cuidando de si, arrumando a mesa, respondendo o WhatsApp, mas a tensão de controlar o tempo perde força. Surge uma confiança silenciosa no que sustenta o viver, não no que tentamos organizar.

Lembro de Belém do Pará, onde aprendi que a chuva tem horário. Reuniões eram marcadas antes ou depois dela, como se fosse o relógio da cidade. Essa referência simples sempre me fez sorrir porque expõe um modo mais sábio de lidar com o tempo 1. Ali, ninguém discute com a água, ela dita o ritmo. Os corpos acompanham, as conversas se adaptam. Há naturalidade nisso. O tempo não vem do pulsar mecânico, vem do movimento da Terra, de suas marés, de seus ciclos. Essa sensibilidade ainda existe, mas se esconde sob agendas eletrônicas e as insuportáveis frases sobre produtividade.
Quando volto a olhar dessa forma, tudo muda de lugar. O tempo perde o status de entidade e volta a ser recurso prático. Ele deixa de dominar a paisagem interna. A atenção repousa no fundo estável que observa o nascer e o dissolver dos instantes, e essa percepção devolve proporção ao viver. Não preciso correr para alcançar o que já passou nem esperar uma hora ideal que nunca chega. A realidade se mostra como fluxo e o único ponto firme não pode ser contado. É presença.
O tempo expõe nossa tentativa de controlar o que não podemos possuir. O instante escapa, o relógio insiste e aí, alguma coisa em nós percebe a comédia discreta desse embate. Quando esse reconhecimento amadurece, a pressa perde função e o que chamávamos de urgência não encontra apoio. Resta o movimento, simples e profundo, como um nome que nunca se deixa fixar na água.
“É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara.”
- O Grande Lebowski
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Nenhum autor é dono do que escreve, apenas o tradutor do silêncio que o antecede. Escrever foi o modo que encontrei de investigar o que somos quando a mente se aquieta. Cada texto nasce desse movimento silencioso da consciência tentando se reconhecer em forma. Às vezes surgem palavras, outras apenas o espaço entre elas. Não escrevo para explicar nada, escrevo para lembrar. A ficção, a ciência e o cotidiano são apenas pretextos. O que fala por trás é o mesmo silêncio que lê.
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Seiscentos anos atrás, o computador da época era um grande dispositivo composto por vários discos de madeira entrecruzados, gravados com marcas que forneciam informações sobre as horas, os dias e os meses do ano. Pendurados em mosteiros por toda a Europa, esses instrumentos de precisão eram cuidados diariamente pelos monges do claustro, fornecendo as informações necessárias sobre quando se reunir para a oração e em quais dias celebrar festas importantes.
Por mais de três séculos, os monges beneditinos da Abadia de San Zeno, em Verona, Itália, planejaram suas vidas devocionais com um computador rudimentar. Esse objeto astronômico, o astrolábio, foi fabricado em 1455. O astrolábio tem um metro e vinte de diâmetro e é decorado com ilustrações iluminadas em pergaminho sobrepostas em três discos de pinho. Três mostradores eram girados manualmente todos os dias, indicando a data em algarismos arábicos e a data no calendário romano, bem como os dias festivos, as constelações do zodíaco, a quantidade de luz do dia, os dias festivos e as fases da lua.
“Os seres humanos só percebem o tempo à medida que ele passa. Sabemos que o sol nasce e se põe. Podemos sentir os ciclos anuais em termos das estações do ano. E, se você for inteligente o suficiente, poderá perceber que também existe um sistema celeste que se repete anualmente. Mas a medição do tempo é um conceito humano.” Roger Wieck





