Fenômeno: Não-Dualidade Pop
É possível dissolver o personagem sem matar o que pulsa dentro dele?
Assim como o estado de flow que entrou na moda corporativa como se fosse botão de produtividade e o mercado abraçou a ideia com a leveza de quem transforma qualquer estado profundo em planilha, a não dualidade segue pela mesma porta giratória, agora tratada como atalho para quem quer parecer desperto sem ter que lidar com o próprio enredo. É curioso ver “buscadores” colecionando gurus como colecionam aplicativos de bem-estar, cada um prometendo um caminho mais curto para um lugar que nunca esteve longe. Aliás ‘zero’ longe. Este ensaio nasce desse cenário, do lugar em que o silêncio também ganha embalagem premium.
Nietzsche não falou sobre Advaita, nem sobre espiritualidade de Instagram, nem sobre o que hoje se chama de “consciência expandida”, mas, como toda fala viva, essa frase que ele escreveu ecoa muito além do tempo em que foi escrita e toca, com uma precisão desconfortável, no que tenho observado com mais frequência nesse cenário atual travestido de clareza e lucidez mas ainda operando com as ferramentas da ilusão:
“Tenha cuidado, para que ao expulsar seu demônio você não exorcize o que há de melhor em você.”
Friedrich Nietzsche
Essa linha é o tipo de coisa que ninguém quer ouvir quando está embalado pela euforia de parecer desperto - ou seria “iluminado” ? - mas é exatamente nesse ponto que algo começa a fazer sentido de verdade, no conforto da ideia que dá espaço ao desconforto da percepção.
Não é de hoje que se tenta dissolver (alguns querem destruir) o ego como se fosse apenas um ruído que atrapalha.
Não me refiro à compreensão direta da impermanência da identidade, mas à forma com que esse discurso se espalha agora, envernizado por uma estética de iluminação que parece ter sido encomendada numa das tantas boutiques espirituais.
Vejo cada vez mais gente se aproximando da não dualidade com uma pressa de limpeza.
Querem se livrar do ego como quem joga fora um sapato usado demais, como se bastasse remover a casca para revelar o absoluto por trás, imaginando que tudo que pulsa com forma seja um erro de percepção.
É um tipo de higienização do humano mas esse movimento carrega uma violência que muita gente não percebe porque ela vem com trajes (brancos ou terracota, ao lado de lírios normalmente) de paz.
Nesse tipo de espiritualidade pop, o pensamento é tratado como distração, o desejo é visto como obstáculo, a personalidade é associada a um atraso e o silêncio é valorizado pela imagem que projeta e não por uma habilidade ainda a ser conquistada pelo ser humano. O sujeito para de falar, mas continua tentando parecer alguém, só que agora, em vez de querer ser interessante, quer parecer vazio.
E isso continua sendo ego, só que com outra linguagem.
A não dualidade não exige que se apague o personagem, nem que se renuncie ao mundo, nem que se calem os pensamentos, apenas revela que nada disso é ser quem se é.
Já vi gente usar o discurso da ausência como máscara.
Isso não é uma acusação, falo como alguém que também já tentou parecer mais desperto do que estava 1, que também já quis negar o que sentia por acreditar que sentir era sinal de inconsciência.
Negar o que ainda pulsa é sempre uma forma refinada de resistência, e não há despertar possível quando o movimento interno continua sendo o de evitar contato com aquilo que queima.
A não dualidade, quando assumida de forma visceral, não gera indiferença, revela tudo que aparece em um espaço e que nunca é afetado pelo que aparece ali. Compreender a não dualidade intelectualmente, não é nem de perto suficiente - palavras são limitadores, reforçam a dualidade.
Eu não tenho um problema com quem busca, nem com quem se apoia em símbolos para caminhar, mas quando o símbolo é vendido como a chegada em um lugar no qual já se estava, alguma coisa essencial se já se perdeu.
O que é real não precisa “performar” nem se mostrar como ausência de ego, porque afinal, não está tentando provar nada, não está tentando ‘ser’ espiritual.
Está só aqui, vivendo o que aparece, sem se confundir com isso. E isso é mais do que suficiente.
Quando alguém repete que tudo é um, que não há ninguém, que o tempo é ilusão, que os pensamentos são só nuvem, eu já não escuto mais o conteúdo, mas tento escutar de que lugar vem. Se vem da “boca pra fora”, da necessidade de se mostrar vazio ou se vem como substituto do contato direto com o que está sendo evitado, então não importa o quão correta pareça a frase - ainda é só ego tentando ser nada.
Há quem diga que isso também é parte do jogo.
E é.
Uma coisa é saber disso e seguir observando.
Outra é se esconder atrás da ideia de que tudo é só aparência, e com isso justificar a própria recusa em olhar de verdade para o que ainda vibra por dentro.
Reconhecer que o desejo de se livrar do que traz sofrimento, pode ser o que mais atrasa o contato com aquilo que “É”.
Quando alguém decide que o ego é um problema, surge um impulso de neutralizar esse ego, algo que parece nobre, mas nasce do mesmo lugar que cria a confusão. O personagem percebe que está sendo visto e tenta desaparecer depressa, acreditando que isso o fará parecer livre. Esse desaparecimento encenado não dissolve nada, só cria uma versão mais sofisticada da própria história, onde o ego tenta sobreviver fingindo que já não existe.
—
Quando o personagem morre mesmo, não sobra ninguém pra contar.
“É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara.”
- O Grande Lebowski
Obrigado por ler O Psiconauta!
Nenhum autor é dono do que escreve, apenas o tradutor do silêncio que o antecede. Escrever foi o modo que encontrei de investigar o que somos quando a mente se aquieta. Cada texto nasce desse movimento silencioso da consciência tentando se reconhecer em forma. Às vezes surgem palavras, outras apenas o espaço entre elas. Não escrevo para explicar nada, escrevo para lembrar. A ficção, a ciência e o cotidiano são apenas pretextos. O que fala por trás é o mesmo silêncio que lê.
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Aproveite e que o flow esteja com você!
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E ainda não está, diga-se de passagem, porque o termo que uso é apenas o “lembrar” e não o despertar para algo do que já se é.





