Por muito tempo, meu principal gatilho - aquele que me tirava do sério e me colocava num lugar escuro - era quando diminuíam a importância de algo que eu havia feito ou falado. Ou quando não havia reconhecimento do esforço, da dedicação total. Pior ainda: quando não gostavam de algo e não diziam por quê. Isso tem a ver, claro, com um processo de construção de autoestima que foi falho ou inexistente.
Ainda lembro que, com uns 8 ou 10 anos, eu gostava de desenhar carros de corrida, e o fazia com extrema dedicação e foco. Um belo dia, fui mostrar um desses desenhos para o meu pai, esperando, claro, aprovação. Aliás, como tudo o que eu fazia: caso clássico da psicologia.
Ele olhou, olhou, olhou mais um pouco e, no fim, disse apenas:
— Está bom, mas essa parte aqui...
E nesse momento, meu mundo caiu. De novo. Custava ter dito que estava ótimo, ainda que não fosse totalmente verdade? Ou mesmo uma mentira descarada?
Me peguei, muitos anos depois, fazendo o mesmo com a minha filha.
Que m**** é essa que acomete o ser humano, de repetir justamente o que os pais fizeram de pior? (Há exceções é claro, mas minha experiência me afirma que os casos são mais comuns do que parecem).
Sigo pensando nisso enquanto lembro que, não muito tempo atrás, essa questão se dissolveu de maneira inesperada. Aconteceu quando percebi que eu não era quem pensava que era. Muito pelo contrário: não há ninguém em casa, como escreveu David Carse em seu livro “Perfect, Brilliant Stillness” (Quietude brilhante e perfeita), inspirado por Ramesh Balsekar, discípulo de Nisargadatta Maharaj.
A vantagem de se perceber como sendo um com a Consciência, reside no fato de que o sofrimento e a dor, assim como as alegrias e os momentos de felicidade, são partes iguais desse todo. Ser integrado, ser único.
Essa percepção revela que o sofrimento e a dor são relativos ao ego e à mente, esse "aparato" que pensamos que somos, que acredita ser independente, que precisa ser protegido, bem-sucedido, conquistar, ter, poder.
Aqui cabe uma boa puxada de orelha no piloto automático que se manifesta quando contamos histórias para nós mesmos, acreditando que cada pensamento é um caminho, uma orientação, quando, na verdade, é apenas miragem. Uma ilusão cuidadosamente construída ao longo de anos de condicionamento, criação e sustentação de crenças e valores que não são nossos. Não soam genuínos. São repetições requentadas, reembaladas na linguagem de cada época, mas sempre as mesmas ilusões, transmitidas de geração em geração. Um ciclo distorcido de ideias restritas à mente, ao ego, desconectadas, desconexas; num mundo que é um só: interligado, sem fronteiras. Uma vastidão infinita de Consciência desperta.
Seria muito mais simples e poderoso admitirmos, desde cedo, aos nossos filhos, que essa separação não passa de autoengano, ou mesmo apenas uma ferramenta. Um processo construído sobre areia movediça, oriundo da vontade de se diferenciar e de usar o poder que cada indivíduo — com sua consciência programada — adquire ao surgir neste planeta. Sim, surgir. Não chegar. Porque somos daqui. Fazemos parte disso tudo, como os animais, as plantas, as bactérias e os fungos.
Se, desde cedo, nossos filhos entendessem que essa separação é como um "código", criado para vivermos em sociedade, nos relacionarmos — com a linguagem como ferramenta —, talvez percebessem que nomes, rótulos, definições são apenas isso: ferramentas. Não essência.
Na realidade, somos A CONSCIÊNCIA. Aquilo que tudo vê, tudo percebe, sem julgar. Apenas aceita.
Se compreendêssemos isso, nossa vida ganharia um salto em entendimento e qualidade nas relações com tudo o que nos cerca.
Esse conceito, que parece utópico, tem sido apresentado como realidade desde tempos imemoriais, por inúmeras tradições — em sua maioria orientais, mas também pelo cristianismo místico e pelos sufis do islamismo. A “verdade” de que buscamos fora o que está dentro já foi discutida e apresentada em muitas formas, com pouca aderência. Talvez porque as religiões consolidadas operam num campo mental muito mais estruturado e normativo, especialmente depois de Constantino, no caso do cristianismo.
Mas aqui não se trata de discutir religião. Meu ponto de vista é de total aceitação a todas as formas de fé e dedicação a algo que torne a vida mais suportável. Mas também não me omito da percepção de que histórias vêm sendo contadas há milênios por diversos intérpretes — não pelos legítimos autores. Vide os evangelhos e o budismo: tudo registrado muito tempo depois da vida dos que supostamente falaram ou agiram desta ou daquela forma.
A Não Dualidade apresenta um caminho simples e leve. O que não significa fácil. Especialmente porque a maioria das pessoas que têm contato com essa abordagem o faz de maneira mental, intelectual — tentando compreender e explicar algo que só pode ser percebido fisicamente, instintivamente. Uma inteligência intuitiva, não lógica. Longe do ego e da mente, mais próxima do coração e do estômago — onde nossos instintos e emoções atuam a nosso favor, sem passar pelo crivo tendencioso e lento (analysis paralysis) do sistema 2 do Nobel Daniel Kahneman1.
Kahneman descreve dois modos de funcionamento mental: o sistema 1, rápido, intuitivo, automático, e o sistema 2, lento, analítico, racional. A maioria de nós vive presa nesse segundo sistema — que questiona, duvida, calcula e hesita. Mas a experiência de Ser não se revela por explicações. Se revela por presença.
Talvez o maior convite aqui seja esse: sair da tentativa de entender e começar a experimentar. Trocar o esforço de compreender por um espaço de escuta silenciosa. Em vez de reagir com a mente, respirar com o corpo. Em vez de tentar nomear o que sente, apenas sentir. Em vez de pensar sobre a vida, viver com atenção o momento que se apresenta.
O intuito é perceber que a liberdade que tanto buscamos não está do lado de fora, nem no fim de uma longa jornada mental.
Está aqui. Antes do pensar.

"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
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Em seu livro "Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar", Daniel Kahneman descreve dois sistemas de pensamento no cérebro: o Sistema 1, rápido, automático e intuitivo, e o Sistema 2, lento, deliberativo e consciente. O Sistema 1 opera sem esforço, tomando decisões rápidas baseadas em emoções e associações. Já o Sistema 2 exige atenção e esforço mental para analisar informações e tomar decisões lógicas, envolvendo cálculos e raciocínio.