Memórias do Futuro
Quando o futuro já aconteceu, quem ainda espera? Uma conversa silenciosa sobre o flime A Chegada
Assisti novamente A Chegada (Arrival, Denis Villeneuve, 2016) depois de quase dez anos e a experiência foi revivida de forma completamente diferente. Não houve surpresa com a história, o filme continuava o mesmo, embora alguns digam que a interpretação do filme vai mudando ao longo do tempo, mas não, aqui era eu quem havia mudado. E muito. Especialmente na forma de sentir o que o filme propõe.
A atenção ao rever o filme não estava concentrada naquele ponto habitual atrás dos olhos, onde costumamos organizar a vida como se alguém estivesse ali comandando tudo. O olhar vinha mais espalhado, mais baixo, sustentado pelo corpo inteiro, com a respiração acompanhando as imagens, o filme não estava sendo simplesmente assistido, estava reverberando num lugar que agora já estava disponível.
Talvez seja por isso que A Chegada desperte uma emoção tão difícil de explicar para mim (um dos meus 3 filmes favoritos) e, ao mesmo tempo, tão fácil de reconhecer. A emoção não nasce da narrativa, do suspense ou do apego aos personagens, é uma emoção que surge antes da história ganhar forma, um reconhecimento direto, quase físico, de algo que já estava aí. O excelente diretor Denis Villeneuve não força compreensões, não conduz o espectador pela mão, não resolve nada. Ele cria um espaço no qual certas estruturas mentais começam a relaxar por conta própria, especialmente a que sustenta a nossa relação com o tempo e com a linguagem.
O que eu vi e senti desta vez
A linguagem, no filme, deixa de ser apenas um instrumento de troca de informações e passa a revelar seu papel mais profundo, o de organizar a experiência, dar continuidade à memória, sustentar a sensação de identidade e compreensão do mundo. A menção à “Hipótese Sapir-Whorf” 1 ou Relatividade Linguística é um ponto fundamental do argumento do filme.
Já com relação ao tempo, quando visto dessa perspectiva, o tratamento é um arranjo funcional, útil para operar no mundo, aquela noção de linha e continuidade, mas que é insuficiente para explicar o que está vivo agora. O impacto emocional vem desse deslocamento sutil, quando a percepção reconhece que a vida não acontece em sequência, mas foi narrada assim para que o personagem pudesse se manter coeso.
Esse reconhecimento não costuma a aparecer como uma ideia clara, vai chegando como uma sensação, uma pressão suave no peito, uma pausa na pressa interna, uma espécie de comoção sem objeto definido. É a mesma qualidade de presença que se manifesta quando ouvimos uma música instrumental, observarmos alguém dormindo profundamente, acompanhamos um pôr do sol sem a necessidade de comentar ou postar no Instagram. A Chegada sustenta esse estado com silêncios longos, com uma fotografia que privilegia espaço e intervalo, se recusando a explicar demais. O olhar desacelera e, com isso, o pensamento perde o impulso de tomar a frente de explicações e interpretações.
Ao rever o filme, ficou difícil ignorar o contraste entre esse campo silencioso e o tipo de questões que costumam a nos capturar como humanidade. Medo do outro, disputa por controle, urgência em prever cenários, tentativas incessantes de garantir segurança num território que nunca ofereceu garantias.
Enquanto essas preocupações se repetem, o filme aponta para algo muito mais simples e, por isso mesmo, raramente considerado, o debate de que a Consciência não está localizada dentro do corpo e nem confinada à mente, criada por ativações neuronais. Ela é o campo amplo no qual corpos, mentes, histórias e expectativas aparecem e desaparecem, sem esforço e sem centro fixo.
O que torna A Chegada tão tocante é que ele não suaviza essa constatação, não protege a identidade que acreditamos ser. A experiência da linguista interpretada por Amy Adams, deixa claro que compreender o tempo não elimina a dor, que ver mais longe não evita a perda, que amar implica acolher a experiência inteira, com tudo o que ela carrega - e não é pouco. O peso emocional nasce exatamente desse ponto, quando a fantasia de controle perde sustentação e a vida se apresenta como ela é, inteira, sem edição possível. Permanecer ali, exige mais honestidade do que força.
É profundamente humano perceber que a Consciência que assiste ao filme é da mesma natureza da Consciência que sustenta cada forma que aparece na tela, sejam os personagens, os dois seres heptápodes - Abbott e Costello ;) - ou o próprio silêncio entre uma cena e outra. Quando essa percepção toca, ainda que brevemente, a experiência deixa de ser organizada em termos de dentro e/ou fora. O filme não está diante de alguém numa tela, ele acontece no mesmo campo em que pensamentos, sensações e emoções surgem.
Talvez A Chegada nos provoque tanta reflexão - e até algum incômodo - porque, ao deslocar nossa relação com tempo, linguagem e identidade, algo muito íntimo começa a perder contorno. Isso não acontece de maneira abrupta, nem espetacular, mas vem com a naturalidade de algo que sempre esteve sustentando a experiência e que, por um instante, deixa de ser tomado como personagem.
A pergunta que me fiz e repito aqui
Nesse instante silencioso que permanece depois dos créditos, quando já não há história para acompanhar nem sentido para interpretar, o que exatamente continua olhando?
O tempo em que vivemos expõe o limite de uma percepção centrada num “eu” separado e conflitos, polarizações, consumo excessivo e desigualdade aparecem como expressões de uma mesma confusão básica sobre quem olha, quem decide e de onde a vida está sendo conduzida.
“É, bem, você sabe, isso é só, tipo, sua opinião, cara.”
- O Grande Lebowski
Obrigado por ler O Psiconauta!
Nenhum autor é dono do que escreve, apenas o tradutor do silêncio que o antecede. Escrever foi o modo que encontrei de investigar o que somos quando a mente se aquieta. Cada texto nasce desse movimento silencioso da consciência tentando se reconhecer em forma. Às vezes surgem palavras, outras apenas o espaço entre elas. Não escrevo para explicar nada, escrevo para lembrar. A ficção, a ciência e o cotidiano são apenas pretextos. O que fala por trás é o mesmo silêncio que lê.
Mantenho tudo aqui gratuito e de fácil acesso, sem compromisso. Se você achar útil, a melhor maneira de apoiar além de assinar, é por meio de um restack ou recomendação e compartilhamento da publicação - isso faz uma grande diferença.
Aproveite e que o flow esteja com você!
Antes do Pensar, meu livro sobre Consciência e Estado de Flow já está disponível, clique na imagem.
refere-se à proposta de que a língua específica que se fala influencia a maneira como se pensa sobre a realidade.







Adoro esse filme e com o seu texto consegui entender mais profundamente o porquê! Muito obrigado 🙏