Não fui eu quem viveu
Uma vida que se move sem dono, dissolvendo o “eu” em cada mudança. Ensaio da Fronteira Interior.
Vivi muitas vidas numa só.
Essa frase abre minha bio no site — e é pura verdade. Alguns chamam isso de “encarnações profissionais”, porque envolve trajetórias diferentes, profissões, papéis. No meu caso, não. Foram vidas inteiras. Diferentes não só pela atividade em si, mas pelo tempo em que duraram, pela intensidade com que as vivi, pela transformação que me trouxeram.
Na pós-adolescência, ali pelos 17 anos, decidi que queria ser fotógrafo.
Passei no vestibular para Administração de Empresas — o curso mais próximo de algo “útil”, expressão usada pelo meu pai, já que fotografia, arte e design não eram opção em Brasília naquela época. A única coisa que consegui foi um estágio numa empresa de petróleo e depois outro numa estatal de telecomunicações, esse último conseguido com a ajuda do pai de uma namorada, confesso. Em nenhum dos dois fui feliz. Aprendi algumas coisas, sim, mas meu coração estava distante daquelas rotinas.
Em seguida, trabalhei um tempinho em aviação, outra paixão, na Transbrasil, no aeroporto de Brasília. Para quem amava aviação, foi uma realização pessoal tremenda…
Foi então que, inesperadamente, surgiu uma oportunidade em rádio. Ser locutor era algo que nunca tinha passado pela minha cabeça. A chance apareceu por meio de um colega de escola, que queria ter acesso aos LPs importados que as rádios recebiam semanalmente. Ele achava que eu tinha “voz de locutor” e praticamente me empurrou para um teste na Manchete FM, do extinto Grupo Bloch.
Era 1980. Impossível não lembrar da vibe daquela época — as roupas, os cabelos, as músicas. Fui feliz ali. Trabalhei em outras emissoras, fiz um pouco de TV também, na Manchete de Brasília, ligada aos Diários Associados, onde também atuei na antiga Planalto FM (onde trabalhou também Renato Russo, com quem dividi um programa de jazz por alguns meses, antes da Legião Urbana) e que se transformou em 105 FM.
Naquele período, achei que minha busca pessoal pelo sentido da vida, iniciada anos antes, começava a se encerrar. Acreditava, ingenuamente, ter encontrado meu lugar, minha tribo, minha atividade.
Cresci profissionalmente fui estudar e trabalhar em São Paulo, onde também trabalhei em rádio, sob a batuta de Arnaldo Saccomani, famoso produtor musical, então coordenador da Antena 1 FM — na época ainda com programação ao vivo, mais pop. Era 1984. Começava uma viagem solo. Eu realmente acreditava que a busca tinha acabado. Que a vida era aquilo ali. Ao menos eu me divertia — mesmo com o salário baixo, algo que nunca mudou para quem não vira celebridade nesse meio. Mas era o plano perfeito para quem saiu de casa aos 20 anos depois de uma briga definitiva com o pai…
Ao mesmo tempo, meu interesse por design e marketing aparecia nos cursos que eu fazia. Um primo me convidou para integrar sua agência de publicidade como atendimento de contas. Começava ali mais uma encarnação. E, mais que uma mudança profissional, foi uma virada pessoal: saí de casa após conflitos com meu pai, fui morar sozinho — e pela primeira vez tive que lidar com as pequenas tarefas do cotidiano. Um mundo novo se abriu. São Paulo, enorme, viva, diante de mim. Santa ingenuidade.
Essa transição inevitavelmente mudou meu comportamento. Me tornei um explorador, ainda sem a sabedoria do boi velho da fábula — aquele que, vendo o boi novo afoito para pular a cerca atrás das vacas, o adverte sobre o arame farpado.
E assim foi.
Rádio, cursos, vida noturna — experiências múltiplas, intensas. Grandes agências de publicidade e uma nova mudança, desta vez para o mercado financeiro onde depois de alguns anos deixei o posto de diretor de marketing durante a primeira fusão significativa entre dois grandes bancos brasileiros.
Conheci a mulher com quem me casaria, em um casamento… Casamos seis anos depois. Foram quatorze anos juntos, e depois, a separação. Não foi fácil. Mas ganhei duas filhas, que são a luz que ficou.
Veio então outro ciclo: novo relacionamento, novo casamento, novos negócios. Negócios que se encerram, dinheiro que acaba, cidade que muda, vida que muda — de novo. Um hiato profissional me permitiu repensar caminhos, e também abandonar de vez a ideia de viver de fotografia. Eu havia criado uma produtora cultural e realizado o primeiro grande festival brasileiro de fotografia com celulares. Mais uma vida.
Voltei às origens, agora com um novo olhar. Com um upgrade na minha atuação como palestrante e consultor, me vi mentorando jovens — e não tão jovens — executivos num mundo corporativo que eu conhecia bem (e, em muitos momentos, criticava). Isso abriu uma nova perspectiva: conversar sobre o que realmente importa. Nunca chamei de coaching ou mentoria, e sim de facilitar conversas que abrissem horizontes, provocassem ideias, e por que não, fossem libertadoras? Veja aqui.
Ali nascia uma nova vida profissional, enquanto, no plano pessoal, morria um “eu” que, no fundo, nunca existiu.
E é curioso olhar para trás e perceber que todas essas vidas — a do locutor, do publicitário, do fotógrafo e produtor cultural, do mentor, do homem casado, separado, refeito — parecem ter sido vividas por alguém que não sou eu. Ou melhor, que nunca foi um “eu” fixo, definido, estável. Eram apenas expressões transitórias de algo mais amplo que me atravessa.
A ilusão da separação é sedutora. Acreditamos ser entidades isoladas que escolhem caminhos, tomam decisões, traçam destinos. Mas a verdade é que os caminhos nos tomam. As decisões nos atravessam. A vida nos vive.
Não fui eu que vivi aquelas vidas. Fui vivido por elas.
Hoje compreendo que o “eu” que eu pensava ser e buscava consolidar em cada transição — aquele que queria ser alguém, deixar marca, encontrar um propósito — é uma ficção útil, mas ainda assim ficção. Um reflexo momentâneo da consciência, vestindo as roupas e os papéis do tempo.
O que existe é o movimento. O fluxo. A vida acontecendo, sem dono, sem centro, sem controlador. E talvez seja nesse ponto que finalmente encontramos alguma liberdade: quando deixamos de tentar ser e apenas nos permitimos ser vividos pela vida e toda a grandeza que ela traz.
"Sim, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
Makes me rethink on my BOOK framework for coaching. Love it!
keep flowing so beautifully dear friend 🙏