
Não é no excesso de pensamentos, certezas ou identidades que a verdade se revela — mas justamente no que sobra quando tudo isso silencia. É na ausência de controle, de esforço, de separação, que emerge nossa verdadeira identidade.
A ausência de um “eu” fixo, de fronteiras rígidas, de um outro visto como ameaça.
Essa ausência não é vazio morto, é espaço vivo. É presença pura.
É o que sempre esteve lá, esperando que o ruído cessasse.
A verdade se revela quando você para de ocupar o centro da história.
Voltar ao grande vazio — esse campo silencioso que sustenta tudo — não exige esforço. O problema é a mente, que não sabe descansar. Ela puxa, distrai, argumenta, cria roteiros e histórias. Ela quer explicar, entender, consertar, prever. Mas tudo isso é só medo. A mente não suporta o desconhecido. E o vazio, para ela, é um risco. Um espaço onde ela perde o controle.
Só que o vazio não é ameaça. É lar. É de onde tudo surge. É o que permite que tudo exista — inclusive a mente.
No começo, estávamos lá. Ainda éramos esse campo aberto, sem nome, sem identidade, sem separação. Estávamos inteiros. Conscientes. Presentes. Como naquele famoso Koan Zen, “Quando você não está pensando em nada bom ou ruim, nesse momento, qual é a sua face original?” ou na outra versão mais conhecida:
Como era seu rosto antes de seus pais nascerem?
Você não pode descrevê-lo ou desenhá-lo,
Você não pode elogiá-lo o suficiente ou percebê-lo.
Não é possível encontrar um lugar onde
colocar a Face Original;
Ela não desaparecerá nem mesmo
quando o universo for destruído. - Mumon
Mas então, aos poucos, algo se fecha. Passamos a nos enxergar como unidades isoladas. Fragmentos soltos no meio do mundo.
É como se cada um de nós fosse uma estrela, acreditando ser um ponto fixo no céu, desconectado do resto. Mas a verdade é que todas as estrelas pertencem à mesma noite. O espaço que une é muito maior do que as formas que brilham, no entanto, esquecemos disso. Acreditamos na solidão. Na escassez. No perigo. Aprendemos que o outro pode nos ferir, nos tirar algo, nos fazer perder. Aprendemos a lutar. A disputar atenção, afeto, sucesso. A proteger o que supostamente é “nosso”.
Mas aqui vai o corte:
O outro não existe.
Essa frase carrega dois pesos. Um libertador. Outro, incômodo.
O primeiro é esse: não há separação real. O que parece “o outro” é só uma expressão da mesma presença que você é. A diferença é só aparência. Profundamente, somos um só corpo, uma só vida, uma só consciência se manifestando em múltiplas formas, ou como costumo a dizer, em “aparatos ou unidades corpo/mente”.
Mas tem o outro lado, mais sombrio: o outro não existe porque não o vemos.
Não o enxergamos. Não o sentimos. Não o escutamos.
Estamos tão ocupados com nossa própria história, nossos desejos, medos e urgências, que o outro simplesmente desaparece. Vira um figurante na narrativa do “eu”. Só enxergamos o que nos afeta diretamente. Só ouvimos o que reforça nossa visão de mundo. Só reagimos ao que ameaça ou valida a nossa identidade.
É brutal, mas verdadeiro: o outro não existe... porque o “eu” não permite.
A mente vive girando em torno de si mesma.
“Eu quero.”
“Eu preciso.”
“Eu tenho que...”
“Eu, eu, eu.”
O centro é sempre o mesmo. E quando tudo gira ao redor do “eu”, o outro só entra em cena como obstáculo, ameaça ou reforço. Nunca como alguém real.
Vivemos como se estivéssemos no centro de um palco, sob holofotes. Os outros são só sombras, figurantes, barulho de fundo. Mesmo quando dizemos que amamos, muitas vezes é só o reflexo de nós mesmos que estamos tentando proteger.
E isso cansa. Isola. Enrijece. No fundo, sabemos que essa bolha não é real. E sentimos falta de um tipo de conexão que não se alcança enquanto estivermos presos ao próprio reflexo.
A chamada “fronteira interior” também é só um conceito. Não há linha entre dentro e fora. Não há separação real. O que existe é uma presença viva e contínua, que tudo atravessa, tudo sustenta, tudo é.
Fronteira Interior
Nestes primeiros dias do novo ano, começo oficialmente o desafio que me impus, o de criar alguns ensaios como base para um livro e também como direcionador para minhas palestras e workshops sobre o estado de flow e Consciência.
Voltar ao grande vazio é parar de sustentar o personagem. É reconhecer que, por trás do nome, da história, do corpo, existe algo que sempre esteve aqui. Observando. Sentindo. Sendo.
O outro não existe porque nunca houve dois —
mas também porque o ego não permite que haja.
Enxergar isso é o primeiro passo para romper com a bolha. Para sentir de verdade. Para escutar de verdade. Para se abrir.
A paz não vem de conquistar nada.
Vem do fim da ilusão de que você está sozinho.
Vem quando você percebe que nunca foi o centro.
E isso é uma ótima notícia.
"Sim, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
Cadu, aquela foto da Fronteira Interior é simplesmente fantástica - cheia de simbolismo, rica para reflexão. Vai firme no seu livro, meu caro!
Gracias querido amigo y muy felices Pascuas de “resurrección y transfiguración” 🙏🏼