O instante antes da urgência
O que sempre esteve aqui
Este ensaio não propõe respostas nem oferece caminhos. É apenas uma observação simples, amadurecida ao longo do tempo, sobre a pressa que organiza a vida e sobre aquilo que fica quando essa pressa perde importância. É uma conversa, não um argumento. Um convite discreto para olhar o instante antes que ele seja ocupado por planos, memórias ou expectativas, e perceber o que já está disponível quando nada é exigido.
O tempo tem me mostrado algumas perspectivas que, mesmo depois de quase 64 anos vividos, ainda não haviam se deixado perceber com clareza. Uma delas diz respeito a algo simples, embora pouco praticado, que é deixar de me cobrar por estar em atividade o tempo todo. Há momentos em que não existe nada a fazer, nenhuma pendência a resolver, nenhuma ação a ser tomada, e passei a reconhecer esses intervalos não como pausas improdutivas, geradoras de inquietação, mas como acessos diretos à fonte, ao campo silencioso onde a vida acontece antes de ser organizada em tarefas.
Nem sempre foi assim. Durante muito tempo, vivi imerso na lógica que organiza a vida no Ocidente, intensificada de maneira decisiva com a chegada da internet, onde tudo parece exigir movimento constante, atenção fragmentada e disponibilidade permanente. O fazer contínuo se tornou quase uma identidade e a pressa, um valor. Era(?) bacana dizer que estava ocupadíssimo e para muita gente ainda é. Estar ocupado passou a funcionar como uma espécie de credencial invisível, a ausência de tempo como sinal de importância, enquanto a disponibilidade para simplesmente estar e ser fosse confundida com descuido ou improdutividade.
Com o passar dos anos, e com o amadurecimento que surge de forma natural, essa lógica começou a perder força. Não foi combatida, mas revelou-se frágil diante de algo muito simples: a constatação de que tudo pode acabar a qualquer instante. A vida não oferece garantias de continuidade e nenhum acúmulo de tarefas cumpridas, metas alcançadas ou agendas lotadas altera esse fato.
Essa percepção não chegou como ameaça, mas como ajuste de foco, uma espécie de reposicionamento silencioso. A noção da morte como um lembrete de que só existe este momento.
Passei a usar esse entendimento como um aliado para viver cada momento de forma mais inteira, atento às palavras que são ditas e às que ficam por dizer, aos gestos que surgem espontaneamente e aos que são adiados sem necessidade. Existe um tipo particular de vazio que se instala quando algo essencial é adiado indefinidamente e ele costuma se revelar apenas quando o outro já não está mais disponível para ouvir, responder ou simplesmente existir. Esse reconhecimento muda a qualidade da presença, sem exigir solenidade ou dramatização.
O tempo, quando observado com mais cuidado, se mostra como uma construção mental funcional, como comentei em meu ensaio anterior. 1 O que chamamos de passado se sustenta na memória, enquanto o futuro permanece no campo das possibilidades que nunca se apresentam como experiência direta. O único ponto onde há vida efetiva é este instante, que surge e se dissolve continuamente. A sensação de que o tempo passa, nasce da memória, que organiza a experiência em sequência e cria a impressão de duração, de trajetória pessoal, de história contínua.
Essa função não é um problema em si. Sem certos tipos de memória, experiências simples deixariam de existir como unidade, como acontece com a música, que só se revela plenamente porque uma nota ainda ressoa quando a seguinte aparece. Ainda assim, é da mesma estrutura que emergem a sensação de envelhecimento, a ideia de obsolescência e o medo persistente da finitude, acompanhados pela preocupação constante em chegar a algum lugar, ser relevante, deixar marcas suficientes para garantir algum tipo de permanência simbólica.
Há, no entanto, um deslocamento possível, que não depende de esforço nem de disciplina, mas de reconhecimento, que chamo simplesmente de “lembrança”. Ele passa pela dissolução da ilusão da separação, um equívoco antigo que nos condicionou a nos perceber como entidades isoladas, apartadas da própria vida que nos atravessa.
Ao longo de milênios, aprendemos a nos enxergar como “artefatos” corpo-mente independentes, dotados de escolhas autônomas, guiados por uma espécie de gestor interno que pareceria comandar tudo a partir de algum ponto atrás dos olhos.
Esse modelo começa a se fragilizar quando observamos com honestidade que não batemos o próprio coração, não controlamos a respiração na maior parte do tempo, não dirigimos conscientemente os processos digestivos, e ainda assim a vida segue acontecendo com precisão e inteligência. O pensamento, visto de perto, não se mostra diferente. Ele surge de forma involuntária, como expressão de memórias, condicionamentos, valores e crenças acumuladas ao longo do tempo, sempre a partir do passado.
O ato de pensar tem sua função prática e não precisa ser descartado (por óbvio). Ele é útil quando há algo concreto a resolver, uma decisão a tomar, um problema objetivo diante de nós. Fora desses contextos, tende a se transformar em ruminação dispersa, transitória e frágil, dissolvendo-se assim que recebe atenção direta. Pensamentos e seus desdobramentos habituais, como julgamentos, análises e antecipações, funcionam melhor quando acessados sob demanda, como downloads, ferramentas disponíveis, não como fluxo contínuo que ocupa todo o espaço da experiência.
Quando esse fluxo perde centralidade, acontece uma reorganização natural. A atenção se assenta no instante em que esta leitura acontece, no ambiente em que o corpo está, na temperatura que envolve a pele, nos sons que compõem o fundo da cena. Essa é a única realidade efetiva. Todo o resto, sempre apoiado pela linguagem, permanece como construção mental útil para a convivência e para a comunicação, mas insuficiente para tocar o essencial.
Existe algo anterior às imagens e às vozes que habitam a mente, um silêncio simples que se revela nos momentos em que não há nada a resolver, nada a ajustar, nada a ruminar nem remoer. Esse silêncio não é produzido nem sustentado por esforço, se revela quando a atenção reconhece que esse passo atrás, tão natural quanto a respiração, já está dado. Sempre esteve. E permanece, independentemente do movimento das formas.
Não há nada a segurar. A vida segue, inteira.
“É, bem, você sabe, isso é só, tipo, sua opinião, cara.”
- O Grande Lebowski
Obrigado por ler O Psiconauta!
Nenhum autor é dono do que escreve, apenas o tradutor do silêncio que o antecede. Escrever foi o modo que encontrei de investigar o que somos quando a mente se aquieta. Cada texto nasce desse movimento silencioso da consciência tentando se reconhecer em forma. Às vezes surgem palavras, outras apenas o espaço entre elas. Não escrevo para explicar nada, escrevo para lembrar. A ficção, a ciência e o cotidiano são apenas pretextos. O que fala por trás é o mesmo silêncio que lê.
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Escrever na Água
Chamamos de presente aquilo que já não está aqui. Insistimos em medir o instante enquanto ele se dissolve, e na pressa de provar que o tempo existe, perdemos o que realmente está vivo.







Seu texto é brilhante meu amigo Cadu, leio com prazer e aprendo com você. Obrigado por compartilhar