O limite da confiança - O caso Oliver Sacks
O ponto onde a imagem perde o fôlego e a vida real aparece
Este ensaio observa o movimento que se revela sempre que a confiança depositada em alguém encontra o limite da própria ficção. A confiança, quando sustentada sobre a imagem, carrega em si o começo da própria quebra. O contraponto não é a desconfiança, mas a clareza que aparece quando a separação perde força e o pano de fundo indiviso volta a ser sentido.
Oliver Sacks entrou no imaginário contemporâneo por meio das histórias que pareciam revelar um cuidado raro com a experiência humana, histórias presentes em livros como Enxaqueca, Tempo de Despertar e O Homem que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu, reforçadas pela adaptação cinematográfica de Tempo de Despertar com Robin Williams e Robert De Niro. A recente divulgação de que muitas dessas narrativas foram moldadas a partir de movimentos internos que ele nunca expôs, somada à crítica de Steven Pinker à própria checagem de fatos da famosa revista centenária New Yorker que publicou a informação recente, cria uma rachadura na figura pública que se tinha dele e deixa visível um funcionamento comum a toda identidade que se acredita separada.
A revelação de que muitas das histórias haviam sido reorganizadas, ampliadas ou filtradas por necessidades internas do autor abriu uma fissura nessa construção. Pode-se perceber a quebra da confiança como desvio ético, mas o que se expôs foi o movimento de uma identidade tentando sustentar sua forma numa realidade percebida como externa. Quando a vida é organizada pela suposição de separação, a integridade se torna um exercício contínuo de manutenção. A narrativa precisa proteger o personagem, e o personagem começa a exigir coerência onde não existe coerência real. É nesse esforço que surgem distorções.
A atenção voltada a Sacks encontrou eco em outro território, o da psicologia comportamental, onde Francesca Gino e Dan Ariely enfrentam questionamentos semelhantes, ainda que em contextos diferentes. No caso de Gino, investigações internas conduzidas por Harvard apontaram manipulação de dados em vários estudos, muitos deles amplamente citados. A universidade a suspendeu e, diante da repercussão, ela processou Harvard e os autores do Data Colada, alegando difamação e má conduta investigativa. Harvard respondeu com uma contra-ação. A disputa jurídica não esconde o ponto essencial: uma identidade pública tentando defender a própria imagem com os instrumentos disponíveis, enquanto a estrutura que a sustentava se desfaz.
Dan Ariely, envolvido em controvérsias relacionadas à integridade de dados em pesquisas sobre honestidade - que ironia -, viu uma parte importante de sua credibilidade ser revista. O padrão se repete. A confiança que o público deposita nesses nomes costuma repousar sobre a suposição de que existe transparência plena entre quem produz conhecimento e quem o recebe. Essa suposição falha quando a mente que fabrica o conhecimento acredita precisar proteger o personagem que o apresenta.
Esses episódios não pertencem a campos distintos. Eles revelam a mesma contração ocorrendo em diferentes superfícies. A mente separada tenta sustentar a imagem que acredita ser necessária para permanecer no mundo.
Essa imagem cria expectativas externas e internas que não se alinham com a vida real, e quando a pressão aumenta, a verdade deixa de ser vista como expressão natural e passa a ser tratada como elemento negociável, moldável, defensivo. A confiança se rompe porque ela nunca se apoiou no que era essencial, apenas na forma aparente.
A ética, frequentemente convocada nesses momentos, mira o comportamento individual, quando o movimento mais profundo não está no indivíduo, mas sim na própria estrutura da identidade. A crença na separação produz a sensação de que existe algo a proteger, algo a temer, algo a perder. Essa sensação reorganiza o gesto, distorce a narrativa, ajusta dados, modifica fatos, porque é isso que o personagem acredita precisar para continuar existindo. Não se trata de malícia, mas de fragilidade.
A confiança que se desfaz nessas figuras expostas não era confiança na vida, era confiança na imagem e imagens não carregam solidez. Elas dependem do olhar do outro para existir e, por isso, se tornam um campo frágil e instável. Quando a rachadura aparece, o que se desmancha não é a integridade do ser humano, mas a expectativa que se criou sobre ele. Essa quebra expõe o mesmo funcionamento que opera silenciosamente em todos nós enquanto acreditamos ser alguém à parte do todo.
Nada disso toca a realidade que sustenta tudo, que acompanha cada gesto sem depender de reputação, construção narrativa ou aprovação externa. Essa realidade não se move ao sabor das imagens que criamos para existir no mundo, e permanece intacta mesmo quando o personagem se desfaz. A verdadeira confiança brota desse reconhecimento e não de qualquer figura pública, por mais brilhante que pareça. Quando a separação enfraquece, a confiança deixa de precisar de contornos, não pode ser quebrada e não se apoia em nenhum personagem. A desconfiança perde o sentido. A imagem perde peso e deixa de ser necessária.
Essa confiança não é emocional, não é psicológica, não é moral.
É ontológica, não depende do outro, nem de reputação, nem de coerência, porque ela vem do reconhecimento da nossa verdadeira natureza - antes da divisão entre eu e outro, antes de qualquer identidade.
A revelação pública que desestabiliza um nome não altera o que nunca se partiu. Ela apenas mostra que sustentamos nossas expectativas em um terreno que não podia sustentar nada.
Quando a imagem projetada some, a vida começa.
“É, bem, você sabe, isso é só, tipo, sua opinião, cara.”
- O Grande Lebowski
Obrigado por ler O Psiconauta!
Nenhum autor é dono do que escreve, apenas o tradutor do silêncio que o antecede. Escrever foi o modo que encontrei de investigar o que somos quando a mente se aquieta. Cada texto nasce desse movimento silencioso da consciência tentando se reconhecer em forma. Às vezes surgem palavras, outras apenas o espaço entre elas. Não escrevo para explicar nada, escrevo para lembrar. A ficção, a ciência e o cotidiano são apenas pretextos. O que fala por trás é o mesmo silêncio que lê.






