Ouvi esses dias uma história Zen que me instigou a escrever esse ensaio. Era sobre um monge que decidiu se retirar para uma caverna na China, onde viveria até o final de seus dias. Ele era um artista e, durante anos, sua única atividade, além de meditar, era pintar um tigre em uma das paredes da caverna. O trabalho foi tão meticuloso, tão perfeito, que quando finalmente concluiu a obra e a contemplou, sentiu medo.
A história me fez refletir sobre como, às vezes, criamos nossas próprias ilusões, nossas próprias expectativas, e como elas podem nos assustar quando se tornam reais ou assim parecem.
Corta para hoje. Depois de muitos anos, senti medo novamente. Não o medo de um tigre pintado, mas o medo que surge quando confrontamos a fragilidade da vida, o desgaste do corpo, a passagem implacável do tempo.
Sempre tive uma saúde invejável. Em meus quase 63 anos, pouquíssimas intercorrências médicas marcaram minha trajetória. A mais séria, se é que posso chamá-la assim, foi uma cirurgia para retirada da vesícula, realizada por laparoscopia, com três pequenos furos na barriga. Entrei e saí do hospital no mesmo dia, como se nada tivesse acontecido.
Ao longo da vida, uma herpes zoster me atingiu logo após a morte do meu pai. Talvez isso explique o episódio: a baixa imunidade, fruto de uma tendência minha a relativizar dores e sofrimentos, evitando lidar com eles de frente. Lembro-me de uma frase que meu pai costumava dizer: "Não quero velório." Na época, me agarrei a essa ideia como uma forma de acelerar o processo de luto e minimizar meu sofrimento. Mas a conta veio meses depois, quando a herpes apareceu. O que resiste, persiste, já diria algum filósofo de botequim.
Depois, algumas gripes, uma Covid (não tenho certeza, o teste foi dúbio) e só. Até então, minha saúde parecia uma fortaleza inexpugnável. Mas essa semana, ao visitar o oftalmologista, recebi a notícia de que precisarei passar por uma cirurgia de catarata em breve. Minha mãe, com 89 anos feitos agora, dia 10 de Fevereiro, nunca precisou de óculos, só recentemente para ler. Achei que tivesse tido sorte nesse quesito, mas a realidade é que, há algum tempo, tenho notado dificuldades na leitura.
Escrevo meus textos originalmente em uma máquina de escrever, depois os transponho para um arquivo digital, que edito no computador. Cada vez que realizo esse processo, a nitidez das letras parece escapar, como se aquelas letras todas juntas aos poucos se fundissem.
O medo que me acometeu não é da cirurgia em si. Pelo que me contam, é um procedimento quase banal nos dias de hoje.
Meu problema está em lidar com o desgaste natural do corpo, com a diminuição da vitalidade e da força física. Mentalmente, sinto que ainda tenho agilidade, que minha mente resiste melhor ao tempo. Mas o corpo não é condescendente. Ele sinaliza, aos poucos, que o fluxo da vida não pode ser ignorado. E é aí que o medo tenta se instalar: na aceitação de que outros sinais virão, de que o envelhecimento é um processo inexorável.
Aprendo, todos os dias, a tentar evitar "pintar o tigre". Ou seja, a criar expectativas irreais, a imaginar situações ideais e depois me apegar a elas como se fossem a única verdade. Todo mundo fala que devemos ter esperança, que as coisas vão se desenrolar de maneira a nos dar tempo suficiente para evitar o desespero. Mas esperança, essa palavrinha danada, que não passa de medo disfarçado, é apenas o outro lado dessa moeda ilusória. Quem vive sem esperança também vive sem medo.
A escritora dinamarquesa Isak Dinesen tem uma frase lapidar: o segredo está em lidar com a situação sem esperança e sem desespero. Aceitar o que a vida apresenta, porque, no fundo, não há alternativa. Não somos agentes absolutos de nosso destino, mas parte de uma Consciência maior, que há milênios os sábios e filósofos defendem como perfeita em sua imperfeição.
E então, me cobro a não ficar pintando tigres. Não criar ilusões que, no final, só servem para me assustar. A vida é o que é, e o medo, por mais que tente se disfarçar de esperança ou desespero, é apenas um sinal de que estamos vivos, de que ainda nos importamos, de que ainda estamos aqui, enfrentando o fluxo natural das coisas.
E assim sigo, tentando não pintar tigres, mas também sem medo de encarar os que já estão lá, prontos para me lembrar de prestar atenção naquilo que é real, a beleza de estar vivo.
A história parece real e pessoal. Essa é a ilusão da separação. O aparente medo emerge no indivisível. A aparente doença emerge no indivisível. A aparente compaixão pelo aparente ser que sofre emerge no indivisível. Nada é pessoal. O indivíduo que clama tal experiência como sua não é real. Simplesmente, tudo é. No todo, só amor infinito é verdadeiro.
Oi Cadu, concordo que todos temos de tentar viver sem nos apegarmos a fantasias. A maturidade nos força a isso. Mas também nos escancara a realidade, aí temos que tocar essa terça parte da vida, aceitando a imperfeição de nossa existência e valorizar por estar vivo. Mas vale lembrar que a outra opção vai parecendo menos assustadora também.