O perdão e o fim do personagem
Perdoar não é esquecer o que aconteceu, é deixar de carregar quem aconteceu.
Falar em perdão é falar de soltar o que já cumpriu seu papel. Algumas vezes o outro é apenas o espelho onde se reflete o que ainda não conseguimos acolher em nós. Em outras, o perdão precisa voltar para dentro, onde repousam as histórias que seguimos mantendo vivas por hábito. O perdão não é um gesto, é o instante em que a consciência se cansa de sustentar o peso da ofensa e finalmente repousa.
Perdoar alguém é uma das tarefas mais sutis e desafiadoras que a mente conhece, porque ela foi treinada para guardar, comparar e se proteger. Tudo nela foi programado para preservar o mapa das dores, para conservar o registro de onde fomos atingidos, como se manter viva a lembrança fosse uma forma de garantir justiça. Quando somos feridos, o impulso natural é manter o ofensor por perto, alimentando a imagem, revisitando as cenas, como se manter a ferida aberta fosse uma forma de manter o controle. É uma tentativa inconsciente de equilibrar forças, mas o que acaba se equilibrando é apenas o sofrimento.
Perdoar é retirar a atenção da ofensa, permitir que ela volte ao silêncio de onde veio.
A mente acredita que o perdão ameaça sua coerência, tem medo de desaparecer junto com a história. Por isso, a cada lembrança reacende a dor, reconstrói o enredo, revive as falas e repete o gesto de autodefesa. Aquele “filminho” que fica passando na nossa cabeça sem parar. O passado se mantém vivo pela atenção que o presente dá a ele. O ofensor passa a existir dentro de nós como uma ideia que se repete, e cada repetição é uma nova ferida. A dor não vem mais do que aconteceu, vem da energia que seguimos investindo em ver aquilo acontecendo outra vez. O personagem ofendido se fortalece no mesmo ato em que se ressente, e a mente confunde o apego à dor com fidelidade à própria verdade.
O perdão não se decide. Ele acontece quando a energia que alimentava a ofensa se esgota, quando o olhar se desloca e o enredo do “filme” perde relevância. Perdoar é simplesmente retirar a atenção da ofensa e deixá-la retornar ao silêncio de onde veio. A lembrança pode continuar existindo, mas deixa de moldar o presente. No instante em que deixamos de sustentar a história que já cumpriu seu papel, nasce o alívio. Não de um ato generoso per se.
Durante muito tempo acreditei que perdoar fosse apagar, esquecer, fingir que nada havia acontecido, empurrar a dor para um canto da memória até que se calasse. Mais tarde compreendi que o perdão não apaga, liberta. Não é simplesmente o esquecimento que faz a diferença, mas a sensação de liberação que é o importante. A memória permanece, mas deixa de ser uma prisão. A diferença está no lugar de onde olhamos: quando a atenção deixa de orbitar o passado, o peso se dissolve, e a ferida se transforma em espaço vazio.
Há um segundo perdão, mais exigente e mais íntimo - o perdão a si mesmo. Ele não acontece diante de outro corpo, mas diante do reflexo. E é nesse reflexo que frequentemente nos tornamos juízes e réus da própria história, nos punindo por não termos sido melhores, mais lúcidos, mais amorosos. Tentamos refazer o caminho, corrigir o que já passou, como se fosse possível voltar ao ponto exato onde a vida nos pegou desprevenidos e agir com a clareza que só chegou depois. Mas a consciência de ontem não tinha os recursos de hoje. Cada gesto foi o único possível dentro do que se via, do que se sentia, do que se sabia naquele instante.
O autojulgamento é a vaidade disfarçada de arrependimento. Ele preserva a ilusão de que poderíamos ter feito diferente, de que o controle estava em nossas mãos. Quando essa crença se desfaz, o arrependimento se revela como o último resquício de resistência ao fluxo natural da vida. O perdão a si mesmo desmonta a estrutura da culpa porque mostra que nunca houve alguém conduzindo o roteiro, o “filminho” não tinha diretor, era apenas a própria vida se expressando através de nós. O perdão, então, deixa de ser um ato e se torna um retorno. Ele não apaga o que aconteceu, mas liberta a mente da necessidade de continuar contando a mesma versão da história.
Há um ponto em que os dois perdões se encontram. É o instante em que o ofensor e o ofendido se dissolvem na mesma percepção. Quando já não há dois lados, o conflito desaparece. O que parecia uma luta entre personagens se revela como movimento de uma única Consciência, expressando-se de modos diferentes, com intensidades diferentes, mas sempre dentro do mesmo campo.
Perdoar não é um gesto nobre, é um gesto lúcido. A atenção se realinha com o que já está livre de passado, o instante em que a mente desiste de negociar com a dor. O perdão acontece quando já não há mais ninguém defendendo nada, quando a ofensa perde o sentido, quando a história deixa de precisar de continuidade.
Perdoar é lembrar que nada precisava ter sido diferente, é devolver ao silêncio aquilo que o ego insiste em manter vivo.
“É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara.”
- O Grande Lebowski
Obrigado por ler O Psiconauta!
Nenhum autor é dono do que escreve, apenas o tradutor do silêncio que o antecede. Escrever foi o modo que encontrei de investigar o que somos quando a mente se aquieta. Cada texto nasce desse movimento silencioso da consciência tentando se reconhecer em forma. Às vezes surgem palavras, outras apenas o espaço entre elas. Não escrevo para explicar nada, escrevo para lembrar. A ficção, a ciência e o cotidiano são apenas pretextos. O que fala por trás é o mesmo silêncio que lê.






