
Você já percebeu que tem alguma coisa que antecede todo pensamento e toda emoção? Uma presença discreta, anterior a qualquer movimento mental, tão natural e constante que costuma passar despercebida, como o simples ato de respirar. No entanto, ela está sempre aí, silenciosa, inabalável, acessível a qualquer um que se disponha a notá-la.
As primeiras vezes que percebi essa presença foram em situações de sofrimento intenso. No meio do caos, surgia a sensação de um refúgio intocado, como se eu sempre soubesse, sem precisar pensar, que havia um lugar onde nada poderia me atingir. Não era uma conclusão, não era raciocínio, era algo visceral, instintivo, um saber sem palavras. Era um vislumbre breve, mas suficiente para me sustentar.
Foi a partir dessas experiências, que anos depois comecei a escrever sobre não dualidade. Em cada texto, o que tento apontar é justamente para esse lampejo de percepção: a constatação de que não existe separação real entre aquilo que chamo de “eu” e aquilo que percebo como “mundo”. Mas aqui há um ponto crucial: a compreensão genuína não acontece no plano intelectual, das ideias.
A mente pode organizar explicações convincentes, pode até criar uma narrativa lógica, mas isso não passa de um truque do ego. O reconhecimento verdadeiro acontece no corpo, é sentido antes de ser pensado.
Nas palestras, mentorias e workshops que conduzo, costumo associar esse tema ao estado de flow, pela afinidade direta entre ambos. E sempre alerto: a mente vai se apressar em traduzir e buscar explicação daquilo que ouve em conceitos, mas a experiência não cabe em conceitos. A compreensão real chega de modo inesperado, irrompe como uma lembrança instintiva, um instante em que a Consciência se vê a si mesma, entendimento também debatido na Escola de Quarto Caminho de Gurdjieff, que chamava de “lembrança de si”. Um lampejo basta para que a percepção nunca mais seja esquecida.
Essa presença é inegável. Não depende de fé nem de crença, porque sempre esteve ali. Muitos a chamam de Consciência, outros de Presença, outros ainda de Deus. Os nomes são irrelevantes. O que importa é perceber que ela não se apresenta como pensamento, mas como pura experiência.
Existem práticas que podem facilitar esse reconhecimento. O processo de auto investigação, por exemplo, é direto e desarmante. Pergunto a mim mesmo: o que está aqui agora que não é um pensamento? Quem sou eu quando não recorro à memória para me definir? Posso simplesmente repousar no ato de ser, sem precisar pensar? A simplicidade dessas perguntas engana. É justamente por serem simples que o ego se apressa em descartá-las ou em transformar o vislumbre em teoria.
A experiência, quando acontece, não traz efeitos extraordinários. Não há êxtase místico nem visões deslumbrantes. Há apenas a percepção clara e quase infantil de algo óbvio demais para ter passado despercebido por tanto tempo. Muitos riem ao perceber isso. Outros rejeitam, incapazes de aceitar que o essencial possa ser tão simples. Mas é simples. É só isso. E é tudo isso.
Não aprendemos isso ao nascer. Ao contrário, crescemos acreditando que somos entidades isoladas, frágeis, ameaçadas por um mundo hostil. Passamos a vida tentando proteger o que pensamos ser, correndo atrás de conquistas, acumulando mais “ter” e esquecendo o “ser”. É nesse desencontro que se instala o sofrimento.
O vislumbre da não separação já é suficiente para desmontar essa corrida. Quando percebo que o “eu” não está separado do mundo, mas é apenas mais uma expressão da mesma Consciência, surge imediatamente um alívio. Robert Anton Wilson 1 falava em “túneis de realidade”. Thomas Metzinger descrevia o “túnel do ego” - leia o link abaixo. Não importa o termo, a ideia é a mesma: vivemos confinados em interpretações parciais, acreditando nelas como se fossem a realidade em si. Perceber a limitação desses túneis abre espaço para algo mais amplo.
E então tudo se esclarece: não há chegada. Não há linha de chegada, não há corrida. Só existe aqui, agora. O passado já não é, o futuro ainda não é, o presente mal nasce e já se dissolve. Foi.
O que surpreende é a obviedade. Não há nada de especial, nada de sobrenatural. Só uma clareza simples, direta, sem ornamentos. Talvez seja exatamente por isso que tantos não a percebam. Esperam alguma coisa extraordinária enquanto deixam escapar o que sempre esteve diante dos olhos.
O extraordinário, no fim das contas, é justamente isso: aquilo que é tão óbvio que parece impossível de ser esquecido.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
Obrigado por ler O Psiconauta!
Mantenho tudo aqui gratuito e de fácil acesso, sem compromisso. Se você achar útil, a melhor maneira de apoiar além de assinar, é por meio de um restack ou recomendação e compartilhamento da publicação - isso faz uma grande diferença.
Aproveite e que o flow esteja com você!
Antes do Pensar, meu livro sobre Consciência e Estado de Flow já está disponível, clique na imagem.
O conceito de "túnel de realidade" de Robert Anton Wilson refere-se à ideia de que cada indivíduo tem uma interpretação única da realidade, moldada por um conjunto subconsciente de filtros mentais derivados das suas crenças e experiências. Wilson expandiu esta teoria, inicialmente proposta por Timothy Leary, argumentando que não existe uma única realidade objetiva, mas sim múltiplas "túneis" ou "mapas" individuais do mundo.
Como funcionam os túneis da realidade
Filtros Mentais:
Wilson descreve que o cérebro recebe um volume imenso de informações a cada minuto, mas apenas uma pequena fração é selecionada e interpretada como realidade.
Experiência Pessoal:
Esses filtros são formados por nossas experiências, cultura, símbolos e mitologias.
Construção Subjetiva:
Cada pessoa constrói o seu próprio túnel de realidade de forma criativa, mesmo que não tenha consciência disso.
Interpretação da Realidade:
O mundo que percebemos é, na verdade, uma projeção do exterior e da nossa própria interpretação, não um reflexo exato da realidade.