Não há futuro. Não há passado. Nem presente.
Tudo acontece ao mesmo tempo, agora, o tempo todo.
A ideia de tempo é uma invenção frágil — uma tentativa da mente de organizar aquilo que não se organiza. A vida não é uma linha. É um redemoinho. Cada instante carrega em si o nascimento e a morte. O agora cria e desfaz o agora, sem precisar do que veio antes nem do que supostamente virá depois. O aqui e o agora não pedem permissão, não esperam compreensão, não seguem lógica. Eles são.
Nada é o que parece. A realidade que costumo defender, justificar, tentar controlar, não passa de um script decorado, ensaiado mil vezes até virar verdade. Mas não é. Aquilo que penso ser fantasia — o invisível, o absurdo, o que não se encaixa — talvez seja justamente o que mais se aproxima do real. Um “real” sem moldura, sem manual, sem explicação.
Como folha que brota do galho e o galho da árvore ou como uma bolha que se forma no mar, sem destino, foi assim que chegamos aqui, ou nascemos. Não viemos de fora. A árvore já está na semente, e a semente já estava aqui. Essa ideia de origem e destino também é uma construção. Uma ilusão útil pra quem ainda acredita que o tempo é uma linha.
O tempo não se move. Nós é que inventamos o movimento. A experiência não acontece no tempo. Ela é o tempo. Ela é o agora vivo que se refaz a cada respiração. Tentar explicar seria como afirmar que cães farejam volumes — não faz sentido, e mesmo assim, há algo nisso que é verdade1. A verdade não se prova. Se sente. E esse sentir passa longe da mente.
Eu sei por dentro. Eu sinto por fora. Mas esse saber e esse sentir não pertencem a um eu contido num corpo. Quando olho nos olhos de alguém, não vejo um outro. Vejo a mim mesmo. Ou melhor: vejo esse espaço onde tudo pode acontecer. Um campo aberto, silencioso, que acolhe tudo sem precisar nomear nada. O olhar não está preso a uma cabeça. Porque, no fundo, não há cabeça alguma aqui.
Essa não é uma figura de linguagem. É uma observação direta. Douglas Harding, através de seu trabalho "The Headless Way", propôs uma investigação radicalmente simples: olhe para o que está acima dos seus ombros. O que você vê? O mundo. O céu. O outro. Mas não há rosto. Não há contorno. Onde imaginamos haver uma cabeça, há apenas espaço. Um espaço consciente por onde o mundo entra.
Ver isso não é adotar uma crença, é abandonar todas. O que sou, antes de qualquer identidade, é abertura. Presença nua. Um campo onde tudo se mostra, acontece, passa. E é nesse espaço que tudo se encontra: a árvore, o som, a pedra, o outro. Tudo aparece e desaparece nesse vazio vivo.
Essa ausência de rosto é a minha verdadeira face2. Quando desapareço como "alguém", tudo mais aparece em mim. O mundo inteiro cabe aqui, onde não há forma. Essa é a liberdade de ver “sem cabeça”. Uma experiência viva, direta, concreta. Eu sou espaço para o mundo.
Somos porosos. Aerados. Como aquele chocolate Suflair, com espaços por toda parte. Do micro ao macro, não há solidez. Não há superfície sem fenda. Até o que parece duro, firme, concreto, é feito de intervalos. Átomos. Lacunas. Vibração. E por isso, de longe, pareço. De perto, me dissolvo. E no fundo, sou a mesma coisa que você. O mesmo que o meu cachorro, a Pedra da Gávea, a abelha ou o mar. Não dois.
A consciência vive em tudo. Não está limitada a esse corpo, a esse nome, a essa narrativa. A experiência acontece em mim e através de mim, mas não começa nem termina aqui. E quando isso é visto — não pensado, visto e sentido —, o centro desmorona. Não há um eu que comanda. Não há um lugar para chegar. Só o agora se mostrando de mil formas ao mesmo tempo.
Eu não vou a lugar algum. Tudo vem até mim. Dirigindo, caminhando, voando, não importa — é o mundo que se move, não eu. O corpo se desloca, mas eu permaneço. O que importa não são os lugares, nem as conquistas. O que orienta não é o objetivo. É a vivência, o atravessar, o sentir e às vezes, só o silêncio.
Sêneca já dizia: a vida não é curta. Nós é que a desperdiçamos. Corremos atrás de coisas que não nos preenchem, nos perdemos em tarefas que só servem pra ocupar o vazio. Buscamos do lado de fora algo que nunca saiu de dentro. Mas mesmo o “dentro” é uma armadilha, porque ainda pressupõe fronteira. E a fronteira não existe, é invenção do ego.
O ego adora fronteiras. Ele precisa delas pra saber onde termina e onde começa o outro. Precisa controlar, arbitrar, comandar. Mas não vê que seu tempo está acabando. O ego não vai desaparecer, ele não precisa morrer ou ser aniquilado como pregam algumas linhas de pensamento. Mas precisa ocupar seu lugar: uma ferramenta prática, útil para a logística do dia a dia. Só isso. Ele nunca foi o dono da casa.
Essa identidade que tanto defendemos — esse eu sólido, separado, competitivo — é só uma máscara. Um disfarce funcional. E às vezes nem tão funcional assim. Uma performance aprendida pra disputar um lugar ao sol, ou quem sabe à sombra.
Acordar não é se iluminar. É romper o auto engano. É ver o truque. Rasgar o papel de parede e olhar o que está por baixo. Perceber que a narrativa nunca foi real. Acordar é cair. É despencar sem chão. Sem certeza. Sem mapa. E ainda assim, confiar. Não porque sabe onde vai cair, mas porque já não há nada a segurar3.
E quando tudo falha — o plano, a ideia, o esforço —, o que sobra é o que sempre esteve ali. O espaço. O silêncio. A ausência de personagem. Não sobra um novo eu. Sobra o que já era. E isso não tem forma.
Você age, mas não é você quem age. O corpo se move com precisão, sem dúvida, sem esforço. É o gesto certo, no tempo certo, sem haver um plano. O fazer se dissolve no ser — e disso nasce o que chamam de estado de flow. Um lugar sem lugar onde a ação acontece por si, plena, inteira, viva. A mente não comanda nem interfere. Só acompanha, calada, como um barco conduzido pela corrente. O tempo se dilui e o “eu” desaparece. E tudo o que acontece é só o fazer sendo feito. O Wu Wei do Tao.
O mundo venera o flow como estratégia de desempenho, como o auge da performance. Mas flow vai muito além, não é sobre fazer mais. É sobre fazer sem peso, sem esforço. É quando o gesto nasce direto do vazio, sem querer provar nada, apenas o gesto como objetivo. Mihaly Csikszentmihalyi chamava de gesto ou intenção autotélica4. Não há controle, ele é pressuposto e natural. Só presença. Não há planejamento. Só resposta imediata, exata, viva.
E é aí que aparece o “se entregar”, se render. Mas não é submissão. É potência sem controle. É direção sem direção. É quando a ação e o ser se tornam uma coisa só. Não há mais distância entre o que é e o que faz. Aqui não há conquista. Tudo se perde. Mas no perder, algo se revela. Não o que eu queria mas o que sempre foi. Aquilo que estava antes da pergunta, antes da busca, antes do nome, antes do pensar.
Não há linha de chegada. Não há prêmio. Não há conquista. Não há final feliz nem pote de ouro no fim do arco íris. Há só o agora. Sempre o agora. Cheio de tudo. Vazio de tudo. Real demais para ser explicado porque aliás, a nossa linguagem atrapalha, é um limitador para descrever não o que se pensa e sim o que se sente e vê a cada instante.
E nesse agora, tudo se revela. E tudo desaparece. Ao mesmo tempo.
"Sim, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
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Percepção Olfativa Canina: O Conceito de Farejar em "Volumes"
Os cães realmente percebem o mundo de uma maneira extraordinariamente diferente dos humanos, principalmente através do olfato. Quando falamos que os cães farejam em "volumes", estamos nos referindo a uma característica fascinante do sistema olfativo canino.
Enquanto nós humanos enxergamos o mundo primariamente em imagens bidimensionais, os cães experimentam uma realidade olfativa tridimensional. Eles não apenas detectam um cheiro, mas conseguem perceber camadas, profundidade e dimensionalidade nos odores.
Como funciona:
Percepção tridimensional: Os cães conseguem identificar onde um cheiro está mais concentrado, menos concentrado, e como ele se dispersa pelo ambiente, criando um verdadeiro "mapa olfativo" do espaço.
Separação de odores: Enquanto humanos sentem uma mistura como um único cheiro (por exemplo, um ensopado), os cães conseguem identificar cada ingrediente separadamente.
Cronologia olfativa: Eles conseguem determinar há quanto tempo um cheiro foi deixado em determinado local, percebendo a "idade" dos odores.
Equipamento especializado: O focinho do cão contém até 300 milhões de receptores olfativos (comparado a apenas 6 milhões nos humanos) e a parte do cérebro dedicada a processar odores é proporcionalmente 40 vezes maior.
É como se os cães pudessem "ver" o mundo através dos cheiros, percebendo nuvens de odores com volume, profundidade e história. Quando um cão fareja um local, ele está efetivamente lendo uma rica narrativa olfativa que nós, humanos, somos completamente incapazes de detectar.
O koan "Qual era a tua face antes que nascessem os teus pais?" é uma questão fundamental no Zen Budismo, que busca quebrar o pensamento racional e levar a uma compreensão mais profunda da natureza da realidade. O objetivo é desafiar a noção de um eu individual, e a ideia de que a identidade é definida pela experiência e pela história.
Koan:
Em Zen Budismo, um koan é uma pergunta, história ou enigma que é usado para promover a reflexão e a meditação.
"A má notícia é que você está caindo no ar, sem nada para se segurar, sem paraquedas. A boa notícia é que não há chão."
~ Chogyam Trungpa Rinpoche
Autotélico:
A palavra "autotélico" é formada por "auto" (próprio) e "telos" (fim, objetivo). Em outras palavras, uma atividade autotélica é aquela que tem seu próprio objetivo e recompensa inerentes, e não precisa de recompensas externas para ser gratificante.
Relação entre Autotélico e Flow:
A busca por atividades autotélicas pode levar a pessoa a alcançar o estado de flow, a satisfação intrínseca da atividade elimina a necessidade de recompensas externas e permite que a pessoa se concentre completamente na tarefa.