A vida se move sozinha
Do personagem que acha que controla, ao processo que simplesmente acontece.
Antes de qualquer compreensão sobre quem age, há apenas o agir. Antes de qualquer ideia sobre quem vê, há apenas o ver. Quando a atenção repousa nisso sem buscar explicação, a experiência se apresenta inteira, viva, sem personagem à frente.
Nasceu em mim, cedo, a desconfiança de que o que chamamos de eu é uma montagem eficiente, útil para operar no cotidiano, mas insuficiente quando o tema é a realidade de fundo que sustenta cada ação. A frase “só o agir existe” não diminui o valor da pessoa, dos afetos, do corpo e da mente; ela desloca o foco para o movimento vivo que antecede a história do autor. Há o levantar do copo, o caminhar pelo corredor, o escrever que acontece agora, como o vento atravessando uma janela aberta. Quando a atenção abarca o movimento em si, a figura do fazedor perde o centro do palco e algo muito simples e tranquilo fica claro: a vida não precisa de um operador separado para fluir.
Aprendemos a nos ver como indivíduos isolados, com uma fronteira bem marcada entre dentro e fora. Esse aprendizado organiza a convivência, sustenta as responsabilidades, os contratos, as rotinas, mas também estreita o campo de visão quando procuramos reconhecer o pano de fundo silencioso que já está aqui enquanto tudo acontece. Ao voltar a atenção para o que acontece antes da narrativa, a separação perde rigidez com a percepção direta de que a experiência aparece inteira, sem que um centro pessoal precise controlá-la.
Gosto de propor um exercício simples, direto, sem esforço mental.
Em pé ou sentado, permita que a respiração encontre seu próprio ritmo e sinta o peso do corpo tocando o chão. Em seguida, deixe que a audição ocupe o primeiro plano, como se o ambiente ouvisse a si mesmo: ruídos distantes, um carro lá fora, um cachorro, um pequeno zumbido. Depois, permita que a visão repouse no campo visual como um todo, sem perseguir objetos. Não há busca por significado. O som é som. A imagem é imagem. A respiração acontece. O corpo se ajusta. Quanto menos interferência, mais claro o reconhecimento de que a experiência se move por si, de que o processo já está em curso antes de qualquer nome ou rótulo surgir.
Quando a mente tenta enquadrar essa evidência, multiplica conceitos e nomes. Conceitos ajudam no escritório, no laboratório, na reunião de equipe; aqui, eles embaçam a nitidez do que se mostra. O convite é interromper a elaboração no exato ponto em que ela começa, como quem pousa um livro sobre a mesa antes de terminar um parágrafo (Hemingway fazia isso quando escrevia) e percebe, de repente, o silêncio do ambiente.
Não se trata de suprimir pensamentos à força. Eles continuam como nuvens que passam. O reconhecimento está no céu que não se move, nessa disponibilidade límpida que não precisa de esforço para ser o que é.
Chamo isso de observação sem observador 1. Não é um estado raro ou místico. É o modo natural da atenção quando não está ocupada em sustentar um personagem no centro do palco. Na Fórmula 1, num pit stop perfeito 2, a equipe inteira move-se como um corpo único; ninguém precisa afirmar uma identidade para que o conjunto opere com precisão. Há mãos, ferramentas, pneus que chegam e saem, milésimos que se alinham. O processo se cumpre. Quem já viveu uma imersão criativa reconhece: de repente, escrever acontece sem negociações internas, fotografar acontece antes do fotógrafo, falar acontece sem cálculo. A vida não consulta o personagem para prosseguir.
O falso eu se apresenta como a instância que escolhe, julga e controla. Útil para combinar horários, assinar contratos, dirigir no trânsito, gerenciar projetos. Contudo, quando a atenção repousa no espaço entre um pensamento e outro, esse controlador perde substância. O que sobra é uma presença silenciosa que não disputa a cena, mas sustenta a cena. Dela nasce uma lucidez tranquila, que não precisa provar nada, nem a si, nem aos outros. Essa presença não elimina a pessoa que paga boletos, cria filhos, defende ideias. Ela devolve proporção, alinha prioridade, desativa a necessidade de vencer o mundo para existir.
Com o tempo, a percepção se aprofunda e algo sutil se firma. Primeiro, há a Consciência de estar consciente, como uma luz percebendo a própria iluminação que produz. Depois, as experiências surgem a partir dessa luz, como expressões naturais de um campo maior. Por fim, a própria distinção entre quem percebe e aquilo que é percebido se afrouxa. Não sobra uma teoria para explicar, entender ou sustentar. Sobra apenas a simplicidade de estar, em paz com o que surge, livre no meio do movimento, preciso quando a vida pede precisão, macio quando ela pede cuidado.
Viver assim não é abdicar do mundo, ao contrário, é participar dele sem se identificar com a identidade. É trabalhar, amar, ensinar, liderar, criar e decidir com o corpo inteiro ligado à realidade, em vez de manter o personagem em alerta permanente, a luta ou fuga que praticamos desde nossos ancestrais caçadores e coletores.
Na prática, significa uma disponibilidade para este instante que reduz atrito, refina a escuta e melhora a qualidade de cada ação, sem ruído, sem resistência, fluindo naturalmente sem forçar.
O agir segue acontecendo e, nele, a vida se reconhece.
“É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara.”
- O Grande Lebowski
Obrigado por ler O Psiconauta!
Nenhum autor é dono do que escreve, apenas o tradutor do silêncio que o antecede. Escrever foi o modo que encontrei de investigar o que somos quando a mente se aquieta.
Cada texto nasce desse movimento silencioso da consciência tentando se reconhecer em forma. Às vezes surgem palavras, outras apenas o espaço entre elas. Não escrevo para explicar nada, escrevo para lembrar. A ficção, a ciência e o cotidiano são apenas pretextos. O que fala por trás é o mesmo silêncio que lê.
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A Observação sem Observador
A Consciência não é parte do que acontece. É o espaço em que tudo acontece. O corpo e a mente surgem dentro dela, e não o contrário .








