Confissões de uma busca que terminou onde começou
Minha experiência direta sobre a ilusão da separação e a simplicidade do relembrar.
Cresci acreditando que aquela voz dentro da minha cabeça era eu, que o espelho refletia apenas uma imagem de quem eu tinha certeza ser. A mente parecia o centro de tudo o que eu era, um amontoado de lembranças, medos, planos, tudo organizado por um diretor invisível sentado atrás dos olhos, entre as orelhas, decidindo cada passo da minha vida.
A palavra “ego” entrou de mansinho, sempre misturada em comentários soltos. “Fulano é egocêntrico”. “Fulana é autocentrada”. “Baixa a bola”. “Desce do pedestal”. Às vezes eram para mim, às vezes não. Mas essas frases plantaram uma dúvida corrosiva: quem era esse personagem chamado Carlos Eduardo, ou mais para frente, o Cadu que eu jurava ser? Este último, certamente uma persona…
Passei mais de trinta anos atrás dessa resposta. Entrei em terapias, estudei filosofias, frequentei escolas e tradições diferentes. Cada uma prometia entregar a verdade, mas todas me deixavam com a sensação de que algo essencial ainda estava escondido. Então, sem um guia fixo, fui criando meu próprio caminho, ouvindo pessoas que também buscavam, misturando saberes, tropeçando e levantando.
O ponto de virada não veio de um livro sagrado nem de um guru. Veio das frustrações e decepções, que me obrigaram a encarar o ego com outros olhos.
Descobri que ele era só uma ferramenta, uma espécie de aplicativo rodando em segundo plano, útil para organizar a vida prática, mas incapaz de sustentar o peso de toda a existência. Foi quando por um momento, mudei a atenção da cabeça para o coração ou, para ser mais preciso, para aquela região entre o plexo solar e o peito.
Esse simples deslocamento de foco abriu um campo inteiro. Percebi que a consciência não está presa ao cérebro. Ela pode se instalar em qualquer parte do corpo, ou se espalhar além dele. A partir daí, a sensação de separação começou a se dissolver. O corpo e a mente deixaram de ser prisões isoladas do resto do mundo.
Nunca declarei guerra ao ego, como pregam alguns gurus ou tradições. Quando comecei a tratá-lo como um aplicativo útil, mas não essencial, a relação ficou menos tensa. É claro, às vezes ele ainda me arrasta de volta para aquela visão estreita de um indivíduo solitário que precisa se defender ou provar seu valor. Mas essa ilusão não dura muito. A luz da Consciência sempre acaba iluminando a sombra e devolvendo a clareza.
O ego como aplicativo
O ego me parece mais um software que já vem embutido no corpo humano, ativado por volta dos dois anos e meio, quando começamos a dar nomes às coisas e a nos sentir separados do resto. Uma vez instalado, ele se espalha como um código persistente pela mente, criando raízes profundas que fazem com que seja quase impossível removê-lo. Essa resistência em se desfazer, que à primeira vista parece um obstáculo, acaba sendo também uma pista. Ela aponta para algo ainda mais fundamental, um sistema de base que pode ser reiniciado por completo. Daniel Kahneman o chamou de sistema 1 1. Algumas tradições chamam simplesmente de presença. Para o resto de nós, nada mais é do que a intuição, o velho “sexto sentido” que insiste em soprar verdades quando a mente já se perdeu em labirintos de pensamentos encadeados ou histórias sobre nós mesmos.
Esse reset pode acontecer de duas formas: devagar, pelo treino e pela prática, ou de repente, num clarão. Passei décadas meditando, frequentando escolas, acreditando que em algum ponto encontraria a paz definitiva. Vivia sustentado pela esperança, que no fundo é só a outra face do medo. Experimentei picos de êxtase e lampejos de clareza que me alimentaram por anos. Essa é a via gradual. Funciona para alguns. Para outros, não.
Também flertei cedo com a via direta, a da auto investigação. Li Paul Brunton, que conviveu com Ramana Maharshi e falava do “Caminho Breve” 2 , criticando a busca sem fim por um eu superior. Ele insistia: esse ‘eu’ já está aqui. Na época, só entendi com a cabeça. Anos depois, quando o insight finalmente explodiu, percebi que Brunton sempre estivera certo. Esse flash não me trouxe nada novo, apenas me fez relembrar. E reforço, não há nada de místico ou mágico nesse momento.
Já ouvi dizer que o despertar é um acidente. Talvez seja. E talvez, praticar meditação por mais de 30 anos, tenha me deixado mais propenso a ‘sofrer’ esse acidente…mas isso, jamais saberei.
É por isso que nunca gostei da palavra “despertar”, muito menos “iluminação”. O que aconteceu comigo foi simples: lembrei de algo que já estava aqui. O problema é que nossa mente insiste em acreditar na separação e transforma esse relembrar numa corrida sem linha de chegada. Queremos conquistar algo que já somos.
Desde cedo fomos treinados a acreditar numa fronteira invisível, como se houvesse um prêmio esperando ao fazermos a “travessia” dessa fronteira, concluindo uma busca empreendida por tanto tempo. Uma “busca” inútil, fútil, uma perda de tempo vendida a peso de ouro nas feiras contemporâneas de espiritualidade e auto ajuda, nos cursos, livros, workshops, retiros e gurus sentados num palco ao lado de um vaso de flores brancas. Pensamos que somos nossos pensamentos e nos relacionamos com eles apenas pela via mental. Essa confusão é o que nos impede de ver nossa natureza real.
Fronteira Interior
Me dei conta de uma verdade tão óbvia quanto profunda: não há fronteira entre o observador e o observado.
Nunca houve.
Neste ensaio, falo mais do porque escrevo sobre estes temas. Estes textos do Psiconauta farão parte do meu segundo livro "Fronteira Interior" a ser lançado em 2026
A verdade é simples demais para o gosto da mente. Parece até infantil. Mas quando o óbvio é percebido, alivia, traz leveza. É a constatação de que aquilo que procurávamos nunca esteve perdido. O que nos impede de dissolver essa fronteira é o medo atávico de não existir, que nos mantém correndo em círculos, desgastados, sem notar que já estamos em casa. Esse medo desaparece quando vemos morrer sim, as velhas crenças e visões estreitas de mundo, as histórias e personagens que construímos ao longo da vida mas que não são reais. Essas são mortes bem vindas.
Gastamos energia ruminando o passado ou sonhando com o futuro enquanto a única realidade possível se apresenta a cada instante e desaparece. O tempo e o espaço são apenas convenções para facilitar a vida em sociedade. A presença consciente não depende deles. Ela permeia tudo, forma e vazio ao mesmo tempo.
E eu, com esse corpo e essa mente, sou só uma fração minúscula do que realmente sou.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
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Daniel Kahneman propõe, no seu livro "Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar", dois sistemas cognitivos que moldam os nossos pensamentos e decisões. O Sistema 1 é rápido, automático e intuitivo, operando de forma inconsciente e com base em associações e emoções. O Sistema 2 é lento, deliberativo e consciente, exigindo esforço e atenção para realizar análises mais profundas e lógicas. O Sistema 1 é responsável pelas ações do dia-a-dia, como reconhecer rostos ou dirigir familiarmente, enquanto o Sistema 2 lida com tarefas mais complexas, como resolver equações matemáticas.
O "caminho breve" (Short Path) descrito por Paul Brunton representa uma abordagem direta e imediata à realização espiritual, em contraste com o "caminho longo" (Long Path) de práticas graduais e preparatórias.
Características do Caminho Breve
Reconhecimento direto da realidade: Em vez de buscar transformar o ego através de práticas prolongadas, o caminho breve enfatiza o reconhecimento imediato de que o Eu Superior já está presente. Não é algo a ser alcançado, mas sim reconhecido como já sendo nossa verdadeira natureza.
Transcendência do esforço pessoal: Brunton argumentava que o esforço excessivo do ego para "alcançar" a iluminação pode na verdade impedi-la. O caminho breve envolve uma rendição ou entrega (surrender) onde cessamos de tentar forçar resultados espirituais.
Inquirição direta: Influenciado pelos ensinamentos de Ramana Maharshi, o caminho breve utiliza a auto-inquirição ("Quem sou eu?") para ir diretamente à fonte da consciência, sem passar por estágios intermediários elaborados.
Presente perpétuo: A ênfase está em reconhecer a realidade no momento presente, não em preparar-se para uma futura iluminação. A verdade está disponível aqui e agora.
Relação com o Caminho Longo
Brunton não rejeitava completamente o caminho longo - práticas como meditação, estudo filosófico e purificação ética. Ele via essas práticas como potencialmente úteis para preparar a mente, mas enfatizava que em algum ponto deve haver uma transição para o reconhecimento direto.
O caminho breve representa, em sua visão, a culminação natural do desenvolvimento espiritual - um salto da prática para o reconhecimento imediato da verdade que sempre esteve presente.
Esse texto me lembrou da música Open Your Mind, do Dani Black. Por aqui, sigo nas práticas e investigações. Quem sabe um dia ✨️