Ver sem pensar
O que a fotografia ensina sobre Consciência, foco e a arte de estar presente
Minha relação com a fotografia começou cedo. Aos 17 anos, com uma câmera emprestada, produzi meu primeiro ensaio — O espaço habitado — e recebi um prêmio do Instituto de Arquitetos do Brasil. Não era só a emoção de registrar uma imagem que me movia, era algo anterior, mais sutil: a percepção de que havia uma inteligência no instante, algo que só se revelava quando eu parava completamente. Aquilo era mais que arte. Era silêncio lúcido.
Anos depois, fundei a mObgraphia Cultura Visual, uma produtora dedicada a expandir a fotografia com celulares como linguagem legítima. Criamos festivais, exposições, publicações, ocupamos espaços culturais, levamos esse olhar para as ruas, para o cotidiano das pessoas. Democratizamos o acesso, mas, para mim, o que estava em jogo era outra coisa: a possibilidade de ver sem que o pensamento contaminasse aquilo o que era visto. A câmera, ou o celular, eram os pretextos. A Consciência era o campo real de trabalho.
Com o tempo, percebi que a fotografia não apenas calibrava o olhar mas também treinava a mente para calar. Foi então que ela se tornou minha prática meditativa mais direta. Comecei a experimentar a fotografia contemplativa como forma de estar presente com o que É. Sem interpretação, sem legenda, sem busca de resultado. Só ver. Com a mesma simplicidade com que o céu vê a si mesmo refletido num lago.
Olhando para dentro
Essa virada me levou para dentro. Para a percepção de que a realidade nunca esteve do lado de fora da lente. A lente verdadeira, a que importa, é interior. É ela que revela o que está aqui, agora - sem os filtros do passado, sem o ruído dos incessantes comentários mentais. É por essa lente que vislumbro aquilo que muitos chamam de “real natureza”, mas que não precisa de nome: um “ver” puro, sem separação entre quem vê e o que é visto.
A analogia entre lentes fotográficas e estados de atenção funciona porque é concreta. E porque mostra, sem esforço conceitual, a chave da consciência não dual: não existe um “eu” aqui vendo o “mundo” lá fora. Existe apenas percepção. Um campo único, dinâmico, que pode se estreitar ou se abrir, mas que nunca deixa de estar disponível.
Quando estou com a câmera ou o celular na mão, o pensamento recua. Não há espaço para dúvida, nem para explicação. Ou vejo, ou perco o instante. Isso é presença, e é justamente isso que falta quando estamos absorvidos no ruído mental, comentando a vida em vez de vivê-la.
Usar o modo zoom é entrar num detalhe. Observar obsessivamente uma parte da experiência: um problema, uma lembrança, um pensamento. Às vezes é necessário. Mas se não tomamos cuidado, esse foco se transforma em fixação. Perdemos o contexto. O detalhe vira tudo e ficamos cegos para o resto.
Já o modo grande angular expande a percepção. Não foca em nada em particular, mas deixa tudo acessível. É o tipo de atenção que permite ver as relações entre as coisas. É quando consigo perceber, ao mesmo tempo, a respiração, o som dos pássaros, o movimento do corpo, os pensamentos que surgem e desaparecem, sem me prender a nada.
Essas duas modalidades são complementares, mas o que percebo é que, no piloto automático, somos arrastados de uma a outra sem saber. E acabamos ficando numa delas por tempo muito maior do que o necessário. O que muda tudo é quando reconhecemos esse jogo e passamos a escolher conscientemente qual lente usar. É aí que a prática começa de verdade.
Não precisamos estar em um templo nem sentados em posição de lótus olhando para uma parede para praticar isso. A meditação real acontece quando lavamos louça e sentimos a água nas mãos, quando ouvimos alguém com atenção plena, quando percebemos o clique da maçaneta ao sair de casa. A presença não exige ritual. Só exige que a gente pare de fugir do que está aqui e ao contrário, volte, permaneça, perceba o que está aqui.
Pensamento demais é como o autofoco com defeito. A câmera tenta ajustar, mas nunca encontra nitidez. A imagem treme, oscila, desvia. É isso que acontece quando a mente comenta tudo: ela nos separa do que está acontecendo e nos deixa ocupados pensando sobre a vida, quando a vida já virou outra coisa.
A fotografia me ensinou que o instante é tudo o que existe. O clique certo só acontece quando estou inteiro. Nesse instante desaparece a separação entre fotógrafo e cena. Só há o “ver”. E isso não é uma metáfora, é a experiência direta da não dualidade: quando o observador se dissolve no observado e resta apenas consciência lúcida, sem esforço. O flash da percepção.
O Momento Decisivo Interior
Cartier-Bresson falava do “momento decisivo” - aquele instante em que todos os elementos se alinham perfeitamente no enquadramento. Existe um momento decisivo interior semelhante: quando paramos de tentar capturar a experiência e permitimos que ela nos capture.
Esse momento ganha vida quando a câmera interior para de fazer ruído, quando o fotógrafo interior desaparece, quando resta apenas o ver puro. Não há mais sujeito fotografando objeto, apenas um campo unificado de percepção onde tudo que precisa ser visto se revela naturalmente.
Foco também é escolha. Uma lente muito aberta desfoca tudo, já uma muito fechada enrijece, aperta. A consciência, como o diafragma, precisa de ajuste fino. Às vezes, o detalhe importa, mas em outras, é preciso ver o todo. Saber navegar entre essas camadas além de habilidade, é maturidade perceptiva, que nos permite estar com a vida sem nos perdermos nela.
A velocidade também importa. Fotografar com obturador rápido demais congela a imagem. Devagar demais, vira borrão. É o mesmo com o tempo interior: viver correndo cria rigidez e ansiedade.
Estar presente é encontrar a velocidade certa, aquela em que o instante ainda pulsa, mas não escapa.
E o mais curioso: as imagens mais verdadeiras nunca são salvas no cartão de memória ou no arquivo do celular. Elas acontecem aqui, agora, em cada momento em que vejo algo sem julgar, sem projetar, sem comparar, sem rotular. Quando olho com a lente da Consciência limpa e cristalina, o mundo deixa de ser “algo que está acontecendo comigo” e se revela como aquilo que eu sou. Sem divisão, sem distância, sem o "eu" no centro.
Esse é o instante decisivo. Não o que acontece no clique da câmera, mas o que acontece quando paramos de tentar capturar a experiência e deixamos que ela nos viva por inteiro.
"É, bem, você sabe, isso é apenas, tipo, sua opinião, cara."
- O Grande Lebowski
“No necesitamos estar en un templo ni sentarnos en la postura del loto mirando la pared para practicar esto. La verdadera meditación ocurre cuando lavamos los platos y sentimos el agua en las manos, cuando escuchamos a alguien con plena atención, cuando notamos el clic del pomo de la puerta al salir de casa. La presencia no requiere rituales. Solo requiere que dejemos de huir de lo que está aquí y, en cambio, regresemos, nos quedemos, observemos lo que está aquí.” Infinitas gracias querido amigo. 🙏🏼